quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Génios

Parecendo que não, há uma diferença assinalável entre o génio da lâmpada e o génio da garrafa. Eu, por exemplo, embora também aprecie a competência e o rasgo de um bom electricista, dou muito mais valor à sabedoria decilitrada de um bêbado manso.

P.S. - O inventor norte-americano Thomas Edison fez a primeira apresentação pública da sua lâmpada incandescente no dia 31 de Dezembro de 1879, acendendo as luzes numa rua em Menlo Park, Nova Jérsia.

Nos afilamentos das alâmpadas

Foto Hernâni Von Doellinger

As coincidências nunca são por acaso

Esta extraordinária e suspeitíssima coincidência de 31 de Dezembro anteceder sistematicamente o primeiro dia do ano seguinte deveria levar-nos a pensar. Mas não, embebedamo-nos.

Vidas... 22

 

Foto Hernâni Von Doellinger

António Gancho 3

Noite luarenta
 
Noite luarenta
Noite a luarar
Noite tão sangrenta
Noite a dar a dar
Na chaminé da planície
a solidão a cismar
na chaminé da planície
noite luarenta a dar a dar
Noite luarenta
noite de mistério
noite tão sangrenta
solidão cemitério
Na chaminé da planície
o Alentejo a solidar
noite luarenta que o visse
noite luarenta a dar a dar
Noite luarenta
noite luarol
na chaminé da planície
o temor e o tremor
O cavalo a luarar
a lua a fazer meiguice
noite luarenta a luarar
noite luarenta a luarice.
 

"O Ar da Manhã", António Gancho

(António Gancho nasceu em 1940. Morreu no dia 31 de Dezembro de 2006.)

Na minha rua passa o mar 99

Foto Hernâni Von Doellinger

Hélder Proença 4

Nas noites de N'djimpol

Nas noites de N'djimpol
vi a virtude dos homens sem amanhã...
légua a légua
conquistando o caudal do futuro.

Vi-os nas ondas tenebrosas
enfrentando e conquistando!

Vi braços robustos e livres
sonho campos loiros
espigas dardejando ao sabor do vento
brisas e pássaros cantando
sol e flautas beijando o suor fecundante.

Nas noites de N'djimpol
Vi a virtude dos homens sem amanhã...
légua a légua
conquistando o caudal do futuro...

Vi-os nas ondas tenebrosas
enfrentando e conquistando

Sim,
Vi nas noites de N'djimpol
sonho mamãe terra
sonho compassos rítmicos no capinzal
dilatando a fé do homem-terra
o horizonte e o brilho das nossas mãos.

Oiço o grito das brisas loiras...
na imensidão farta dos campos
sim mamãe terra
firmemente sonho
na certeza gritante
de sermos loiros e fortes
como espigas e o sol
fortes e loiros…
Mamãe terra
Sonho mas juramos-te!

Hélder Proença

(Hélder Proença nasceu no dia 31 de Dezembro de 1956. Morreu em 2009.)

O socorro vai... a pé

Foto Hernâni Von Doellinger

Alexandre Vargas 4

Deserto

Praia estendida onde flutuo aberturas… negligente
sapiência…
A praia do passado. Agora só.
Abandonamos a fixidez… reencontramo-la.
A praia que ninguém me ensinou está lá.
Só uma vaga mão familiar nos abandona ao prazo. É a
felicidade que miro, o outro lado… esperança balnear.
Mas depois banhei-me sozinho na praia secreta. As ondas
dos pés. Imagino estar apenas…
É uma vaga mão, é um vago consolo onde estou.

"Poesia Digital", Alexandre Vargas

(Alexandre Vargas nasceu no dia 31 de Dezembro de 1952. Morreu em 2018.)

E entre nenúfares e limos

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Período homólogo

- Boa tarde...
- E o que vai ser?...
- Queria meio ano.
- Novo ou usado?
- Novo, se faz favor.
- Da parte do primeiro semestre, portanto...
- Se houver...

By night

Foto Hernâni Von Doellinger

O testamento

O notário vacilou. Mas leu. O defunto deixava beijos e abraços. Distribuídos pelos inúmeros herdeiros em fracções de zero a 145, consoante o julgado merecimento de cada qual. Dinheiro não havia. Tinha ido todo em copos. E em beijos e abraços.

O segredo

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Um ano casual

- Boa tarde...
- E o que vai ser?...
- Queria um ano.
- Bem passado?
- Mas sem vincos...

Que diz ao vê-lo o rosto da cidade?

Foto Hernâni Von Doellinger

Alves Redol 8

Naquela noite, na praia de areia fina, onde os avieiros pelo Inverno vêm puxar as redes, só se ouvia o marulhar brando do Tejo a acariciá-la.
Estava noite de luar. Um luar brando de Outono que vestia as coisas de penumbra triste. Piscavam luzes na outra margem, dispersas aqui e além, mais ali reunidas, como num concílio de estrelas. Eram constelações de vidas, todas iguais vistas de longe.
A luz que iluminava o senhor não brilhava mais do que a outra que alumiava o servo. Ali não havia casebres, nem palácios. Todas eram irmãs, como ar; estrelas da Estrada de Santiago que polvilhavam de oiro o azul-negro.

"Gaibéus", Alves Redol 
 
(Alves Redol nasceu no dia 29 de Dezembro de 1911. Morreu em1969.)

O socorro vai de mota 3

Foto Hernâni Von Doellinger

Augusto Fera 8

Desde que a vontade abarque
O pulso do nosso ser,
Não há relógio que marque
A hora de envelhecer.

"Cruz de Chumbo e Outros Poemas", Augusto Fera

(Augusto Fera nasceu no dia 29 de Dezembro de 1939. Morreu em 2012.)

Os homens medem-se a quê?...

Foto Hernâni Von Doellinger

Os famosos do dia

No dia 29 de Dezembro de 1891 o empresário americano Thomas Edison patenteou o rádio. No dia 29 de Dezembro de 1987 o tractorista português Anacleto Felgueiras fracturou o cúbito.

Argolada

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Um ano bem passado

- Boa tarde...
- E o que vai ser?...
- Queria um ano.
- Como?...
- Bem passado.

Cãofidências

Foto Hernâni Von Doellinger

Ramsés Ramos 4

Saudade me botou na parede


- há de chorar


mas eu sei que a rede

em que me reparto

é um banquete raro

tanto fino quanto farto


saudade triscou no gatilho

- impossível não prantear


mas eu sinto que o ato

entre o partir e o ficar

é o fico, não o parto 

Ramsés Ramos

(Ramsés Ramos nasceu no dia 28 de Dezembro de 1962. Morreu em 1998.)

Só destes, tenho sete 148

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 27 de dezembro de 2020

Ano praticamente novo

- Boa tarde...
- E o que vai ser?...
- Queria um ano.
- Novo?
- Usado. É para estragar...

A carga pronta e metida nos contentores

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 233

A bisculeta
A bisculeta é um utensílio com pelo menos quatro rodas: a roda da frente, a roda de trás, a roda pedaleira e o pinhão. Vulgarmente conhecida como velocípede sem motor ou bicicleta, há também quem lhe chame automóvel derivado exactamente àquilo das quatro rodas. 

À velocidade de luz
A velocidade da luz desloca-se praticamente à velocidade da luz. O que é extraordinário!

Zé do Boné, um herói impossível
O Zé do Boné andou mais de meio século pelas páginas de O Primeiro de Janeiro e hoje seria um herói impossível. Porque politicamente incorrecto. Criado pelo cartunista britânico Reg Smithe, o malandro Andy Capp, assim se chamava de origem, foi visto pela primeira vez no dia 5 de Agosto de 1957 no jornal Daily Mirror. Internacionalizou-se em 1963, quando passou a ser editado nos Estados Unidos, e chegou a ser publicado em mais de mil jornais, cinquenta países e treze línguas.
Por cá, O Primeiro de Janeiro tomou conta de Andy Capp e rebaptizou-o, numa adaptação feliz, como Zé do Boné. E é como esse nome que o conhecemos até hoje. Zé, para ser "português" e porque sim. Do boné, como a própria imagem indica. Zé do Boné.
O Zé era o típico elemento da classe trabalhadora que na verdade nunca trabalhou. Cidadão imprestável, machista, engatatão sem sucesso, copofónico de gabarito, mentiroso, preguiçoso, implicativo, conflituoso e, numa só palavra, arruaceiro, passava a vida entre o sofá de casa e o balcão do bar da esquina, reservando algumas horas para andar à pancada nos jogos de futebol. Apostador inveterado, as suas modalidades desportivas favoritas eram, para além do pontapé na bola, a columbofilia, o bilhar e as corridas de cavalos. Para além disso, batia na mulher, Flo, trabalhadora esforçada que também gostava do seu copinho e que, quando não, lhe devolvia alguns sopapos.
Enfim, todo um compêndio de indecência e má figura. Ou por outra: acho que conheço este tipo de algum lado...
 
Viciado em pastilhas
Tomava pastilhas atrás de pastilhas mas não havia maneira de melhorar. Eram pastilhas de travões e ainda por cima davam-lhe gases.

Declinando
Ofereceram-lhe um emprego muito jeitoso no Governo. Bem pago e sem precisar de vergar a mola. Ele, vertical, declinou. - Lingua, linguae, linguae, linguam, linguā, lingua... - disse.

Tá-se

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 26 de dezembro de 2020

O fim do Natal é muito triste

O triste do Natal é o fim. Terminasse o Natal em m, Natam, terminasse o Natal em x, Natax, terminasse o Natal em y, Natay, terminasse o Natal em z, Nataz, e, quer-se dizer, o fim do Natal até teria alguma piada. Agora, terminar em l, Natal, um esquelético tracinho ao alto, um pauzinho desamparado armado em guarda-redes, é realmente um fim muito triste.

Voando baixinho

Foto Hernâni Von Doellinger

Radiofonicamente falando

Tinha dois rádios muito jeitosos. Depois de um acidente em Vigo, o rádio do braço esquerdo, coitadinho, só apanha a onda curta.

P.S. - A rádio em FM, inventada pelo engenheiro americano Edwin Armstrong, foi patenteada no dia 26 de Dezembro de 1933. A primeira emissão FM em Portugal foi para o ar em 1954, através do Rádio Clube Português.

Vida de cão 529

Foto Hernâni Von Doellinger

Tolices do mundo

Do palco para os estádios
Shakespeare. Nasceu em Stratford-upon-Avon, era o ano de 1564. Depois de ter cumprido uma razoável carreira como poeta, dramaturgo e actor, morreu em 1616 para dedicar-se por inteiro ao sonho de toda a vida: o futebol profissional. Jogou no Walsall, no Sheffield Wednesday, no West Bromwich Albion, no Grimsby Town, no Scunthorpe United, no Telford United e no Hednesford Town. Virou treinador. No ano de 2017 orientou durante quatro meses o Leicester City, deixando-o na zona de descida à segunda divisão inglesa, e actualmente é o terceiro adjunto de 
Dean Smith no Aston Villa.

Uma questão de gosto
O inglês Guilherme Shakespeare escreveu tubi ornotubi detesdaquestcham. Ornotubi. O nosso Luís Vaz escreveu, e certamente antes do bife, al maminha gentil quetepartiste. Maminha. Para mim, Shakespeare 0 - Camões 1.
Alinhavei o penetrante pensamento supra no dia 1 de Novembro de 2014. Continuo a gostar muito mais de maminha, e evidentemente não estou a falar de carne para churrasco. Na altura, um leitor anónimo mas de óbvia costela anglófila comentou que "Shakespeare é maior que Camões". Eu respondi: "Mas Hrtdfsgnkgetrfdcçygetñtecho é maior do que Shakespeare". E mantenho.

P.S. - A peça "Rei Lear", de William Shakespeare, estreou no dia 26 de Dezembro de 1606, na corte de Jaime I.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Manhã de paz e amor

Foto Hernâni Von Doellinger

Cheira a Natal

Já cheira a Natal - alguém disse. Ele, atrapalhado, explicou - Não fui eu. 

Ah, meu nenúfar

Foto Hernâni Von Doellinger

Irene Lisboa 7

Os poetas cumprimentam-se, delicados.
Cada um como seu metro, o seu espírito, a sua forma;
as suas credenciais...
Mas são simpáticos os poetas!
Sensíveis, femininos, curiosos.
Envolve-os um mistério.
Não! Esta é a linguagem de toda gente: o mistério...
Que mistério?
Os poetas são apenas reservados, são apenas...
perturbados e capciosos.

Irene Lisboa, "Pequenos poemas mentais"

(Irene Lisboa nasceu no dia 25 de Dezembro de 1892. Morreu em 1958.)

Vida de cão 528

Foto Hernâni Von Doellinger

Stultorum infinitus est numerus

Depois de gastar o seu latim, gastou também o seu grego. E nem assim...

O socorro vai de mota 2

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Música própria para operários - dizia o Evaristo

Bravo!, bravo!, bravo!, gritou-se na ópera
O São Carlos rebentando pelas costuras, o público, conhecedor, finíssimo, lisboeta, num delírio de palmas compassadas e gritos comedidos (os chamados gritinhos): - Bravo!, bravo!, bravo!...
O touro, um Miura rondando os 650 quilos, assomou à boca de cena e agradeceu, composto e patriótico: - Gracias, muchas gracias!...

Until the fat lady sings
Já não há na ópera senhoras gordas como havia antigamente. Agora as senhoras da ópera são magras, geralmente bonitas e algumas até boas como o milho. A mim, que sou melómano e purista, faz-me diferença, desconcentra-me.

Sopranos e beltranos
Os sopranos têm, por definição, o tom de voz mais agudo e com mais alcance de mulher ou de rapaz muito novo. Se os sopranos forem homens, os puristas preferem chamar-lhes contratenores, que há quem confunda com contentores. Os sopranos dividem-se essencialmente em sete partes: soprano ligeiro, soprano lírico-ligeiro, soprano lírico, soprano lírico-spinto, soprano lírico-dramático, soprano dramático e soprano ultraligeiro. Também podem ser saxofones ou clarinetes, por exemplo. Nos Estados Unidos, os Sopranos ainda piam mais fino: são mais que as mães, maus como as cobras e convictos frequentadores de meretrizes. São extremamente mafiosos e profundos conhecedores, estes sim, de contentores, blocos de cimento e rios. Quando inadvertidamente apanhados por famílias inimigas, e desmembrados como manda a lei, os Sopranos são chamados, por divertimento, meios-sopranos. Os Sopranos americanos fizeram uma excelente série de televisão e agora vão dar em filme, que terá por título, corrigido, "Os Contratenores". O melhor Soprano do mundo (portanto, o pior) chamava-se Tony e padecia de ansiedade. 

P.S. - No dia 24 de Dezembro de 1871 estreou-se, no Cairo, a ópera "Aida", de Giuseppe Verdi. A 24 de Dezembro de 1920 o tenor Enrico Caruso cantou em público pela última vez, em "La Juive", de Jacques Halevy, na Metropolitan Opera de Nova Iorque. E em 24 de Dezembro de 1951 foi apresentada na cadeia norte-americana NBC a ópera "Amahl and the Night Visitors", composta propositadamente para televisão pelo italiano Gian Carlo Menotti.

Interlúdio fotográfico 283

Foto Hernâni Von Doellinger

Os ausentes de Natal

Sim, gostava muito dos presentes de Natal. Mas os ausentes diziam-lhe mais...

A cidade desce ao rio, e fica

Foto Hernâni Von Doellinger

Um grande igualmente e uma boa continuação


na
nata
natal
natação
natátil natado
natalino nateiro
natalense natalício
natalidade nateirado
natário natatório natadeiro
batatascozidascombacalhau
na
na

Offshore, se fashavore 278

Foto Hernâni Von Doellinger

Ora batatas

Antigamente as batatas eram batatas, e isso chegava. Eram batatas para todo o serviço. Batatas unidas, iguais perante a lei, indiscriminadas, batatas universais. Agora as batatas são apartadas, rotuladas, segregadas, apontadas a dedo - nos minis, nos supers, nos hipers, nos macros e nos falsos pomares de esquina: chamam-lhes batatas para fritar, chamam-lhes batatas para cozer, chamam-lhes batatas para assar. E até faz jeito: olho para o saco, vejo "para cozer" e percebo logo que são óptimas para fritar...

Eu fico já aqui!...

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Letras Galegas 2021 dedicadas a Xela Arias

De certo, a vida ía en serio.
Por iso morrer non conta
números.

Eras moza,
cómplice nunha derrota que non
sumabas. Feliz por terte insomne
por inmortal.

Xa temos cadáveres amigos
e coñecidos,
sabemos da morte o legado inútil.

Pero que ridículo! non?,
abraza-lo feito feliz de xa medrar

- camiñar ás aforas -
en tempos asepticamente tan
Alienados.

"Intempériome", Xela Arias 

(O Día das Letras Galegas de 2021 será dedicado a Xela Arias, foi ontem decidido pela Real Academia Galega)

Caminho 861

Foto Hernâni Von Doellinger

As orelhas

As orelhas. As orelhas são muito úteis. As orelhas servem para segurar o lápis, o cigarro e o raminho de alfádega, que já ninguém sabe o que é. As orelhas centram muito bem a cabeça e estão no sítio certo para se puxar as orelhas. Hoje em dia é proibido puxar as orelhas nas escolas, só se for aos professores. Os puxões de orelhas aos professores são gravados no telemóvel e mandados, com uma grande risota, para o YouTube. Das escolas saem cada vez mais orelhudos. E entram no YouTube.
As orelhas produzem cera, cotão e pêlos, materiais altamente combustíveis. As orelhas ardem: se for a direita, é porque estão a dizer bem de nós; se for a esquerda, é porque nos estão a rogar na pele. Se arderem as duas ao mesmo tempo, o melhor é chamar os bombeiros. As orelhas também deitam fumo sem fogo, pelo menos nos desenhos animados.
As orelhas doem e quando doem chamam-se ouvidos e muitos nomes feios. As orelhas são vizinhas de porta do esternocleidomastóideo, que é o músculo mais famoso do mundo à pala do Vasquinho da Anatomia. As orelhas, em casos extremos, servem também para a nossa alimentação. Em tempos de crise como os que vivemos recomenda-se com molho-verde.
Às vezes as orelhas dão jeito para ouvir. Ouvir é bom e deve-se às orelhas. Há governantes que não são governantes porque não ouvem. Por exemplo: as orelhas dos alegados presidentes dos Estados Unidos da América e do Brasil são orelhas a fingir, orelhas de mercador. As orelhas do deputado Ventura, outro por exemplo, são orelhas de burro. Eu gosto muito de orelhas e tenho duas. De momento.

P.S. - Publicado originalmente no dia 2 de Maio de 2012. No dia 23 de Dezembro de 1888 o pintor Vincent van Gogh cortou a própria orelha esquerda e entregou-a a uma prostituta. Há várias teorias e versões sobre o assunto.

Roda, roda, roda, carrossel

Foto Hernâni Von Dollinger

Encontro de espíritos

Reuniram-se os espíritos no seu tradicional encontro de fim de ano. E lá estavam: o espírito de equipa, o espírito empreendedor, o espírito indomável, o espírito desportivo, o espírito de entreajuda, o espírito de sacrifício, o espírito positivo, o espírito de finura, o espírito geométrico, o espírito al negro e o espírito santo de orelha, que presidia aos trabalhos e perguntou: - Está tudo? Podemos começar?...
Que não. Era melhor esperar um bocadinho. Faltava o espírito natalício...

Também faço isto muito bem 534

Foto Hernâni Von Doellinger

Filinto Elísio 8

Prometeu, quando fez o homem primeiro,
Macho e fêmea, dois corpos fez, pegados:
Porém Jove um composto assim inteiro
Partiu em dois terníssimos bocados.
Daqui nos vem andarmos sempre ao cheiro
Dos membros que nos foram arrancados.
- Ei-la - (nos diz o coração) - É aquela -
Mas vamos a prová-la, e nunca é ela.
 

Filinto Elísio

(Filinto Elísio nasceu no dia 23 de Dezembro de 1734. Morreu em 1819.)

Higiene matinal

Foto Hernâni Von Doellinger

Manuel Lopes 3

A palavra

te lavo e lavro
palavra / pão
polida pedra
de construção

do quanto faço
deste edifício
em que elaboro
fé e ofício,

te esculpo e bruno
verbo / canção
no diário labor
de artesão.

te louvo lume
e pedra d'ara
com que ergo o templo
da flor mais cara

e clara: poesia
com que reparto
os sóis do meu dia
o suor do meu dia
o fel do meu dia

as mazelas do homem
as amargas vidas
o pão subtraído
as pagas devidas

a paz relativa
a justiça rara
a fome de todos
a morte na cara
da criança. o aço
que o corpo nos cava,

a fé o cansaço
desta luta brava

a fartura a poucos
de muitos tomada

o chão proibido
a água negada

o amor que rareia e
a festa sonhada
...

palavra larva
semente pura
que em mim explodes
de sons madura,

te lavo e lavro
verbo / canção

te louvo lume
poema / pão

manhã sonhada
meu sim / meu não.


Manuel Lopes

(Manuel Lopes nasceu no dia 23 de Dezembro de 1907. Morreu em 2005.)

Uma beleza funda, grave, rude e rouca

Foto Hernâni Von Doellinger

Pelo incrível preço que aparece no seu ecrã

E diz o Calcitrin ao Mangostão Mais: - O que é que se passa com a Baba de Caracol, que não a tenho visto?...

Clássico

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Trofafafe, trofafafe, trofafafe...

Houve um tempo em que Fafe era o fim do mundo. Tenho testemunhas. Gente que se metia no comboio em Ouagadougou ou em Anchorage, vamos um supor, às tantas desprecatava-se, passava pelas brasas e quando acordava já estava em Fafe, porque não havia volta a dar, o mundo acabava ali, numa parede à frente do nariz, rés-do-chão da Rua do Retiro. Era também o fim da linha da CP. Ou o princípio, consoante o ponto de vista. Mas, chegando a Fafe, saía-se do comboio e da estação, subia-se a rampa até ao Zé da Menina, respirava-se fundo, olhava-se para o Largo e fazia-se vida. Se forem num instante à minha terra, ainda vão encontrar quem conte como fez. Perguntem ao Gino.
Depois a automotora começou a madrugar só para mim, para me trazer ao namoro ao Porto e tornar-me a casa à noite, Fafe desistiu do comboio e queixou-se muito quando lho "tiraram".
Hoje o fim do mundo é em Guimarães. É lá que está o muro. Para além dali, nada. É um fim do mundo indoor, asmático e com luzinhas de discoteca, uma boa merda à beira do nosso fim do mundo antigo, que era outra categoria - ao ar livre, com couves, tomates, cheiro a alfádega e só saúde. Ainda por cima, o nosso fim do mundo era feminino: dizia-se em Fafe, não sei explicar porquê, "a" fim do mundo.
O mundo está, portanto, mais pequeno. Isto é científico. Mingou 14 quilómetros. Este aperto mundial, de mais a mais num tempo em que os bons vão caindo como tordos, daria jeito para que nos aconchegássemos um bocadinho, trocássemos olás de boca, para que nos abraçássemos se fosse o caso, e no entanto apartamo-nos cada vez mais uns dos outros, de cabeças enfiadas em caixinhas de cores com teclas ou figurinhas de arrastar com os dedos. E agora é a pandemia a afastar-nos. Parece que estamos oficialmente proibidos uns dos outros.
Ia-me esquecendo: a outra conclusão a tirar, e igualmente científica, é que Fafe já não é deste mundo.

P.S. - Publicado originalmente no dia 23 de Novembro de 2013. No dia 22 de Dezembro de 1859 foram aprovados os estatutos da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses, antecessora da CP. A espécie de onomatopeia do título era muito usada no tempo em que havia comboio.

Fim da linha

Foto Hernâni Von Doellinger

Um conto de Natal

Um conto de Natal era geralmente uma seca. Já um conto de réis eram mil escudos. Uma pipa de massa naquele tempo, é preciso que se note. 

Mobiliário urbano (propriamente dito) 205

Foto Hernâni Von Doellinger

Álvaro Cunqueiro 9

No niño novo do vento
hai unha pomba dourada,
meu amigo!
Quén poidera namorala!

Canta ao luar e ao mencer
en frauta de verde olivo.
Quén poidera namorala,
meu amigo!

Ten áers de frol recente
cousas de recén casada,
meu amigo!
Quén poidera namorala!

Tamén ten sombra de sombra
e andar primeiro de río.
Quén poidera namorala,
meu amigo!


"Cantiga Nova que se Chama Riveira", Álvaro Cunqueiro

(Álvaro Cunqueiro nasceu no dia 22 de Dezembro de 1911. Morreu em 1981.)

Caminho 860

Foto Hernâni Von Doellinger

Para cima e para baixo

Para baixo todos os Santos ajudam. Para cima costumam ser os Antunes.

I want to ride my bicycle 107

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Fruta da época

Perguntaram-lhe sobre frutas da época, e ela respondeu ferrero rocher e mon chéri... 

Emplastros

Foto Hernâni Von Doellinger

Schengen, para que te quero

Por exemplo. Uma mulher morena e grávida, no aeroporto. Deve ser detida por contrabando ou por apoio à emigração ilegal?

P.S. - No dia 21 de Dezembro de 2007 o espaço Schengen, de livre circulação de pessoas sem controlos nas fronteiras internas, foi alargado a nove dos mais recentes estados membros da União Europeia, oito dos quais ex-países comunistas.

Era uma vez um jornal

Foto Hernâni Von Doellinger

Deolindo Tavares 5

Carnaval

Não ponhas uma máscara
sobre tua pobre máscara habitual.
Será inútil qualquer disfarce
quando de teus olhos as lágrimas escorrem
e sentes em tua boca o gosto amargo;
é melhor continuares a rir
falsamente, com um trágico esgar.
Em setenta e duas horas
não esquecerás, certo que não,
a sombra e a loucura
que te acompanharão até o fim.
Não ponhas nenhuma máscara
sobre tua pobre máscara habitual.
Não poderás arrancar de tua cabeça
a coroa de espinhos que se cravam em tua fronte.

Deolindo Tavares

(Deolindo Tavares nasceu no dia 21 de Dezembro de 1918. Morreu em 1942.)

Follow me

Foto Hernâni Von Doellinger

Questões entre parênteses

Quando os parênteses lhe caíram na lama, substituiu-os por vírgulas. 

Vasos comunicantes 3

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 20 de dezembro de 2020

Solidariedade, evidentemente, mas com lacinho

Vida de cão, vida de cão!
"Portugueses já gastam mais com cães do que com bebés", dizia a capa do semanário Expresso, em Outubro de 2011.
Meados de Agosto de 2015. "Cão deixado no lixo dentro de um saco gera onda de solidariedade em Vila Real", anunciava o jornal Público, em título fim-de-semaneiro. E acrescentava: "Plataforma Proanimal alerta que nesta altura do ano há mais animais abandonados e menos pessoas disponíveis para os acolher."
Verdade como punho, ontem como hoje. Embora não gere nenhuma "onda de solidariedade", está curiosamente a acontecer o mesmo com os velhos e com os recém-nascidos, por assim dizer, humanos - cada vez mais abandonados, às vezes no lixo, e com cada vez menos pessoas disponíveis para os acolher. É. Vivemos realmente uma "altura do ano" filhadaputa. Mas os cãezinhos, Senhor...

Ser pobre é deveras incomodativo
Ser pobre é fodido. Mas, para quem não sabe o que é a pobreza, "pobre" é apenas título de jornal, cinco caracteres sem pessoas dentro. Pessoas de pele e osso. O jornal Público anunciava no tempo da troika e de Pedro Passos Coelho: os "pobres passam a ter acesso a refeições take away em 950 cantinas em todo o país". Vejam bem o que se escrevia e escreve em Portugal e já vamos no século vinte e um, o tal que nem deveria existir se houvesse respeito pelas profecias: os "pobres" têm outra vez direito à senhazinha da sopa dos ditos. Se os pobres morrerem de fome é porque não deram o nome. Ou então porque não sabem o que quer dizer take away. Problema deles. Os pobres não são leitores do Público.

Havia o clero, havia a nobreza e havia o povo. E isto estava muito bem percebido. Depois apareceu a burguesia, que meteu um bocado de nojo, amantizando-se com o clero, com a nobreza e com o povo, consoante, porque a burguesia é muito dada a certas e determinadas promiscuidades. E a seguir, mas isto já foi um a seguir que demorou muito tempo e ainda está a doer, veio o proletariado, lá do fundo do fundo do clero, da nobreza, do povo e da burguesia que estava distraída a chá e torradas. E do sarro dos pés do proletariado, tipo cogumelos, renasceram os pobres, que aqui atrasado eram uns desgraçados que em dias certos batiam à porta da nossa casa, em Fafe, a pedirem "uma esmolinha por alma de quem lá tem". Porque nós éramos pobres, mas menos pobres do que eles.

Sei muito bem como tudo isto já funcionou em Portugal. Antes do 25 de Abril de 1974, lembram-se? E era desde os bancos da escola - da Escola Primária - que se aprendia, na carne, e com a crueldade própria daquela idade, a diferença entre ricos e pobres. A diferença entre os que tinham tudo e os que não tinham nada. A diferença entre a pasta de cabedal e a sacola de pano. A diferença entre os que escreviam em cadernos e os que ainda usavam a lousa. A diferença entre os meninos ricos que nunca apanhavam do professor e os miúdos pobres que levavam pancada de criar bicho. A diferença entre o sapatinho de verniz e as chancas ou o pé descalço. A diferença entre os que traziam lanchinho com pãezinhos com manteiga e marmelada e os que pediam a senha para ir comer uma sopinha. Pediam.

Exactamente: a sopa e a senha. Naquele tempo - no tempo em que os rapazes não se misturavam com as raparigas e os ricos também não se misturavam com os pobres -, as escolas não tinham cantina e havia muita fome. Havia uma espécie de cozinha, às vezes num edifício anexo ou próximo, e ali servia-se uma sopa. Assim era na minha Escola Conde Ferreira, em Fafe.
Para terem direito à sopa, os miúdos pobres pediam todos os dias uma senha, que era um pequeno quadrado de papel com um carimbo e um sarrabisco feito pelo professor armado em médico. Aqui há anos sugeri que o Governo de Passos Coelho copiasse tão peregrina ideia para o seu tempo: um carimbo na testa de todos os pobres, dos pobres pobres, para que o aparelho do Estado saiba imediata e inequivocamente quem pode comer a sopa.
Claro que já então - no antes do 25 de Abril de 1974 que de verdade existiu - havia quem tivesse vergonha de ser pobre, quem tivesse vergonha de ser apontado publicamente como pobre, e preferia passar fome. Eu sei que não falta por aí quem sustente que fome é um conceito muito relativo, mas eu acho que é cada vez mais uma realidade copulativa. E só peço que, quando chegar a minha vez, quando me vierem entregar a minha misericordiosa dose de "alimentação, vestuário e medicamentos", façam o favor de me deixar também os caixotes de cartão. É que as noites estão cada vez mais frescas.

O povo dá muita despesa
São cada vez mais os portugueses que procuram a sobrevivência no fundo de um contentor do lixo. Sei, porque às vezes ando na rua. Aqui atrasado, de Matosinhos até à Foz, no Porto, passei por nove pontos de contentores de lixo: em seis deles estavam pessoas à cata dos nossos melhores restos. Não eram "drogados", nem "alcoólicos", nem "arrumadores" fora das horas de expediente - se querem saber. Eram pessoas como nós, certamente com mais azar na vida do que nós. Vi, por exemplo: uma família inteira, que podia ser a minha família; uma senhora arranjada e digna, puxando um carrinho de compras que ia compondo com critério, e podia ser a minha mãe; um cavalheiro com o velho orgulho alquebrado, que me olhou com olhos de pedir desculpa por necessitar, e quase posso jurar que ele era eu.
É. Portugal prepara-se para enfrentar a pandemia e a crise, mas de cernelha. Com StayAway e de máscara, os portugueses que afocinhem. Que façam pela vida! E depois que morram como lhes compete, porque isto é um povo que só dá despesa...

Portugal de luxo, Portugal de lixo
Só nos primeiros seis meses de 2019 foram apresentados 166 novos projectos de hotéis em Portugal, contavam então os jornais e são os números mais actualizados que sei. Cento e sessenta e seis, repito e por extenso, que a enormidade do número faz por merecer. Dezoito investimentos em carteira para o Porto e treze para Lisboa. Vila Nova de Gaia vai ter a maior obra do País e a minha rua, em Matosinhos, já é ela por ela entre locais e alojamento local.
Nos princípios de 2018 havia 450 mil casas sobrelotadas e 2,5 milhões de casas subaproveitadas. Havia mais de 735 mil casas vazias, umas caindo de velhas, outras ainda por estrear. Em Portugal havia - e há - cada vez mais portugueses sem dinheiro para pagarem ao banco a prestação da casa. Os portugueses devolvem a casa ao banco, sem ondas e sem suicídios. Em Portugal não há dinheiro para ajeitar a vida dos portugueses. E há cada vez mais portugueses morando no olho da rua. É. O País constrói-se para as visitas.
Portugal de luxo, Portugal de lixo. Um site oficial do Governo exultava: "A Pousada do Porto, instalada no Palácio do Freixo, acabou de entrar na prestigiada e exclusiva rede The Leading Hotels of the World. Só os mais luxuosos, prestigiados e sofisticados hotéis são admitidos na referida listagem de apenas 430 unidades em todo o mundo."
Prestigiada e exclusiva, luxuosa, outra vez prestigiada e sofisticada. A Pousada. Um mundo...
Portugal tinha então cinco hotéis na lista dos 100 melhores do mundo, e em 2012 era português o melhor hotel da Península Ibérica e o melhor pequeno hotel de luxo da Europa era em Lisboa. Em Portugal havia mais de 40 hotéis de luxo. Hoje em dia devem ser mais que as mães.
E há também mais de três milhões de pobres, meio milhão de trabalhadores a salário mínimo, um milhão e meio de desempregados ou mais, entre os registados e os desarriscados, e milhares e milhares e milhares de sem-abrigo, ninguém sabe ao certo quantos. E agora a pandemia...

P.S. - Hoje, 20 de Dezembro, é Dia Internacional da Solidariedade Humana. Vem mesmo a calhar: estamos em cima do Natal e precisamos de nos lembrar dos pobrezinhos, coitadinhos...

Puxando pela vida

Foto Hernâni Von Doellinger

Naquele tempo o Menino Jesus era nosso

As coisas em que a gente acredita quando é miúdo! Eu, por exemplo, acreditava piamente que o Menino Jesus era português - morra já aqui se estou a mentir. Eu ia à missa, ajudava, ouvia com gosto aqueles bocadinhos de Bíblia e fazia a conexão que se impunha: se a Samaritana é de Coimbra, se os apóstolos são todos portugueses, é só ver os nomes - João e Tiago, filhos de Zebedeu, Pedro, André, Mateus, Tomé, Bartolomeu, e por aí fora -, se o Jordão é em Guimarães e o Calvário em Fafe, se Roma é uma avenida em Lisboa, se Nazaré e Belém são nossos, então o Menino Jesus também é. Deus é nosso. Se Deus quiser até joga na Selecção e marca os golos que Lhe apetecer. Já grande, e após alguns anos de desengano e reeducação religiosa nos trabalhos forçados do seminário, passei a olhar com um certo carinho e determinada melancolia para esta minha crença infantil e patriótica. Depois veio Cavaco Silva, em 2006, e eu deixei finalmente de acreditar. Dediquei-me à exegese, à hermenêutica, à toponímia, à topogígia, à geografia e à natação sincronizada sob chuveiro, sem ofensa para os presentes e apenas às primeiras quartas-feiras de cada mês, de três em três meses, dez minutos antes de me deitar.

Na minha rua passa o mar 98

Foto Hernâni Von Doellinger

Vítor Matos e Sá 5

Amo-te sempre

Amo-te sempre
com um pouco de barco e de vento
com uma humildade de mar à tua volta
dentro do meu corpo; com o desespero
de ser tempo;

com um pouco de sol e uma fonte
adormecida na ternura.

Merecer este minuto de palavras habitando
o que há sem fim no teu retrato;
Este mesmo minuto em que chegam e partem navios
- nesta mesma cidade deste
minuto, desta língua, deste
romance diário dos teus olhos -

(e chegarão com armas? refugiados? trigo?
partirão com noivas? missionários? guerras? discursos?)

Merecer a densa beleza do teu corpo
que tem água e ternura, células, penumbra,
que dormiu no berço, dormiu na memória,
que teve soluços, febre, e absurdos desejos
maiores que os braços,

merecer os dias subindo das florestas - e vêm
banhar-se, lentos, nos teus olhos…

Merecer a Igreja, o ajoelhar das palavras,
entre estes cinemas visitando, em duas horas, a alma,
estes eléctricos parando atrás do infinito
para subirem os namorados, a viúva, o cobrador da luz, a costureira
entre estes homens que ganham dinheiro, sangue frio, ou vícios, ou medalhas
e estes telefones roubando a lealdade dos olhos…

Teus cabelos cheirarão ainda a infância
e a vento, depois de passarem por esta fome pública,
estes olhos com regras de trânsito, estes dias sujos,
estes lábios que já não ensinam o pomar
ou a fonte, nem têm gosto de leite e de aurora,
depois destes olhos cheios da pergunta de estarem vivos
em vão?

Merecer honradamente este poema, todos os poemas,
como quem parte, entre os dedos a brancura
quente de um pão!

"Esparsos", Vítor Matos e Sá
(Vítor Matos e Sá nasceu no dia 20 de Dezembro de 1926. Morreu em 1975.) 

Velejador de areias

Foto Hernâni Von Doellinger

Alcides Werk 5

O Lago das 7 ilhas

No Lago das 7 ilhas
há 7 ilhas plantadas
e um mundo verde ao redor.

Em cada ilha uma casa
em cada casa uma virgem
em cada virgem um amor.

No Lago das 7 ilhas
há peixes e tartarugas
e o boto namorador.

Da lama humosa do lago
brotam mil vitórias-régias
- em cada uma uma flor.

No Lago das 7 ilhas,
que guarda o dom encantado
de ser filho do Equador,

há 7 moças bonitas
que vivem nas palafitas
sonhando com seu senhor.

No Lago das 7 ilhas,
somando todas as filhas
do caboclo pescador,

há 7 cunhãs pejadas
de tanto amar a paisagem
e o boto conquistador.

Alcides Werk

(Alcides Werk nasceu no dia 20 de Dezembro de 1934. Morreu em 2003.)

Amor a preto e branco

Foto Hernâni Von Doellinger

O burro

Era burro. Muito burro. Tão burro, que não sabia...

Vasos comunicantes 2

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 19 de dezembro de 2020

Eu vi o Natal!

Subi ao farol e vi o Natal! Não vi nada, estava a brincar. Eu não subi ao farol.

Farol com bicicleta

Foto Hernâni Von Doellinger

Alexandre O'Neill 9

A bicicleta

O meu marido saiu de casa no dia
25 de Janeiro. Levava uma bicicleta
a pedais, caixa de ferramenta de pedreiro,
vestia calças azuis de zuarte, camisa verde,
blusão cinzento, tipo militar, e calçava
botas de borracha e tinha chapéu cinzento
e levava na bicicleta um saco com uma manta
e uma pele de ovelha, um fogão a petróleo
e uma panela de esmalte azul.
Como não tive mais notícias, espero o pior.


"As Horas Já de Números Vestidas", Alexandre O'Neill

(Alexandre O'Neill nasceu no dia 19 de Dezembro de 1924. Morreu no dia 21 de Agosto de 1986.)

Estilos

Foto Hernâni Von Doellinger

Manoel de Barros 9

"Memórias Inventadas", Manoel de Barros

(Manoel de Barros nasceu no dia 19 de Dezembro de 1916. Morreu em 2014.)

Vasos comunicantes

Foto Hernâni Von Doellinger

Vitorino Nemésio 9

Teu só sossego aqui contigo ausente

Teu só sossego aqui contigo ausente
Na casa que te veste à justa de paredes,
Tenho-te em móveis, nos perfumes, na semente
Dos cuidados que deixas ao partir,
A doce estância toda povoada
Dos mínimos sinais, dos sapatos de plinto
Que te elevam, Terpsícore ou Mnemósine,
Como uma estátua fiel ao labirinto.
Aqui, androceu da flor, o cálice abre aromas,
Farmácia chamo à tua colecção de vidros
Onde, à margem de planos e de somas,
Tenho remédio para os meus alvidros.
O chá é forte e adstringente,
O leite grosso sabe à ordenha,
E até nos quadros vive gente
À espera que a dona venha.
Porque tudo nos tectos é coroa,
No chão as traînes, os passinhos salpicados
Como o vento ainda longe de Lisboa
Escolheu a gaivota do balanço
Que no cais engolfado melhor voa:
Um vácuo, enfim, que o não será — tão logo
Chegues no ar medido e a aço propulso:
Por isso um pouco de fogo
Bate sanguíneo em meu pulso,
Pois o amor de quem espera
É uma graça a vencer.
Uma casa sem hera
É como gente sem viver.

"
Caderno de Caligraphia e Outros Poemas a Marga", Vitorino Nemésio

(Vitorino Nemésio nasceu no dia 19 de Dezembro de 1901. Morreu no dia 20 de Fevereiro de 1978.)

Caminho 859

Foto Hernâni Von Doellinger

Ernesto Guerra da Cal 7

Pátria

A Galiza
é para mim
um mito pessoal
maternal e nutrício
com longa teimosia elaborado
de louco amor filial
de degredado
(E de facto é também
- porquê não confessá-lo -
um execrável vício
sublimado)

A Galiza
foi sempre para mim
um refúgio mental
um jardim de lembranças
sossegado
um ninho de frouxel acolhedor
para onde fugir
do duro batalhar e do estridor
da Vida
e do acre ressaibo do Pecado
Subterfúgio subtil
e purificador
de interior evasão
para o descanso da alma
na calma
pastoril
da perfeição de Arcádia
da Terra Prometida
da imaginação

A Galiza
é o meu amor constante
tranquila e fiel esposa
e impetuosa amante
sempre
como Penélope a tecer
na espera
ansiosa e plácida
paciente e palpitante
do retorno final
do seu errante e navegante Ulisses
- outra quimera!

Amo-a
como o náufrago desesperado
ama a costa longínqua e ansiada
que nunca há-de avistar
Amo-a
com saudade antevista de emigrado
que à partida se sabe já
fadado
a ser ausente morrinhento
de nunca mais voltar
Porque ninguém jamais regressa do desterro
à mesma terra que deixou
O Espaço dissolve-se no Tempo:
os lugares
e as gentes que os habitam
mudam e morrem sempre
e nós também morremos
e mudamos
Posso eu acaso me reconhecer
naquele rapaz loiro
que chorando partiu
um dia crepuscular e montanhoso
de Quiroga
no Sil
há tantos anos
e tantos desenganos?

Amo-a
Amei-a sempre
porque nunca deixei
de estar ligado a Ela
pelo umbigo
Porque Ela foi meu berço
e onde quer que eu morrer
Ela há-de ser
o meu íntimo
e último jazigo

Amo-te
enfim
Galiza
coitada, triste e bela Pátria minha
como Tu és
como o Senhor
num mal dia te fez
órfã de história e alienada de alma
vespertina submissa e maliciosa
rústica e pobrezinha

Amo-te
sobretudo
como eu te quereria
como eu em mim te crio
dia após dia
como um encantamento da minha infância
e da minha fantasia

Amo-te
como eu
tresnoitado poeta evangelista
te invento e mitifico
E, como com Jesus Cristo fez Mateus,
visto com ilusórios véus
a tua miseranda e cinzenta Paixão
e intento
com interna e intensa
distante devoção
pôr-te um ninho de Glória imaginária
num apócrifo Novo Testamento.

Ernesto Guerra da Cal

(Ernesto Guerra da Cal nasceu no dia 19 de Dezembro de 1911. Morreu em 1994.)