terça-feira, 18 de junho de 2019

Chegou a época de exames 2

Entreguei a urina para exame. O técnico, mais analítico era impossível, sem sequer olhar para mim, automaticamente, perguntou:
- Está fresca? Trouxe directo do frigorífico?
E eu fui franco:
- Não. Fiz há pouco, ainda está quentinha.
- É pena.
Com gestos elegantes, competentes, o técnico pegou no boião e verteu o seu conteúdo num balão de pé alto, com o cuidado milimétrico de deixar o copo um pouco abaixo de meio cheio. E disse, ainda sem me pôr os olhos:
- Espere aí um bocadinho, que já leva os resultados.
E eu esperei, todo contente com a novidade. O Serviço Nacional de Saúde vai de vento em popa.
Delicadamente, o técnico pegou no copo pela base, afastando-o de si com todo o respeito, e começou a girá-lo vagarosamente, olhando a bom olhar o seu conteúdo, no contraste com a parede branca. E tomou notas. Colocou o copo sobre a mesa e rodou-o em pequenos círculos, primeiro devagar, depois acelerando, para finalmente o levar ao nariz, uma vez, duas vezes. Inalou, compenetradíssimo, e tomou notas. Sorveu uma pequena quantidade de líquido, mantendo-o na boca sem engolir, apreciou-o por momentos com todo o profissionalismo e finalmente cuspiu-o. E compilou as notas:
- Muito bem. Ora, portanto, cor amarela palha, aspecto límpido, reacção a 6,0 e densidade a 1,013. Proteínas, glicose, corpos cetónicos, pigmentos biliares, nitritos e sangue não detectáveis. Urobilinogénico a 0,2 e atenção a esses leucócitos. Estão de 10 a 25, vá ver isso. Células epiteliais e eritrócitos, 0 a 2.
E eu, à rasca:
- Está no gozo, não está?
- Não. É a sério! - respondeu-me o técnico, fitando-me enfim olhos nos olhos e passando a explicar:
- Então você não me conhece? Nunca me viu na televisão? Eu sou, quero dizer, eu era chefe de cozinha, famoso, abençoado por um paladar indiscutivelmente gourmet, definitivo, dono de uma considerável cadeia de restaurantes, mas quê, veio a crise. A crise da fartura, digo melhor: Portugal hoje em dia divide-se em duas partes, os chefes de cozinha e os fadistas, e tanto uns quanto os outros são mais que as mães. Eu, que, não é para me gabar, até me desunhava razoavelmente na fadistice, meti-me nos comes e bebes, mas fiz mal. Com tanta gente no ramo, acabei por cair, como o Newton avisara. É muito cão ao mesmo osso. Que remédio, abandonei a cozinha, despedi-me e fui para longe. Resolvi falir em grande estilo e pus anúncio no jornal. Arranjei emprego aqui no laboratório do hospital a fazer de conta das minhas antigas competências. Quer saber? Os aparelhos de análises à urina estão avariados e inactivos há mais de meio ano, não há dinheiro para camas quanto mais para os mandar arranjar, e, olhe, não me posso queixar, juntou-se a fome com a vontade de comer.
- Ó valha-me Deus, também analisa fezes? Isto é: para além de provador de mijo, também come merda?...

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