quinta-feira, 14 de março de 2019

Carlos Heitor Cony 4

Como nada acontecesse, Segredo baixou as orelhas, dispensando-se de continuar emitindo o sinal que agora adivinhava inútil. Augusto olhava o jardim, o mais-que-olhado jardim que havia cinco anos era não apenas a sua paisagem única, mas o caos em que ele pairava como um Deus no início da Criação. Fiat Mona - e Mona foi feita. E Augusto viu que Mona era boa. Façamos Mona à minha imagem e semelhança.
Ele rompera o caos, separara terras e águas, dias e noites, criara Mona e todos os luzeiros do firmamento, os pássaros do céu e os peixes das águas. Infinitamente imperfeito, tinha orgulho de sua Criação, amava-a, mas a condenava. Sobretudo, não a perdoava.
Mona também pensava, mas em outra direção e com outro sentido: quem agora cortava o cabelo de Augusto? Ele detestava os profissionais. Nos 17 anos de vida em comum, ela é quem aparava os cabelos dele, cortando as pontas sempre de forma incompleta, ele se impacientava, nunca a deixava terminar, parecia humilhado em permanecer com a cabeça baixa, imóvel. De repente se levantava, com a toalha tirava fios de cabelo que se grudavam ao pescoço ou haviam caído nos ombros, declarava-se ótimo: "Está bem, está bem, mês que vem você corta mais."

"A Casa do Poeta Trágico", Carlos Heitor Cony

(Carlos Heitor Cony nasceu no dia 14 de Março de 1926. Morreu em 2018.)

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