sábado, 10 de novembro de 2018

Álvaro Cunhal 4

Diante de um lago lamacento, ensopado em humidade, a estação, tal como a aldeia, parecia deserta. Ninguém no átrio, ninguém no balcão das bagagens, ninguém à bilheteira, ninguém no cais. Nem o ruído de uma voz, nem de qualquer trabalho. Só o tiquetaque da chuva e o gorgolejar de um ralo invisível. Chegado ao fim do cais o forasteiro, ao voltar para trás, deu de súbito com um empregado de calças de ganga e samarra de surrobeco, parado junto ao relógio e olhando distraidamente a linha.
A pergunta respondeu calmamente:
- O Zé Cavalinho deve estar por aí e já lho indica. Ele é lá desses sítios. E, olhando a chuva, acrescentou:
- E um grande ponto, o Zé Cavalinho.
Tirou do bolso uma lata com tabaco, serviu-se e ofereceu:
- Uma cigarrada?
O forasteiro limpou as mãos e fez o seu cigarro. Entretanto o ferroviário enrolara lentamente o tabaco, lambera a mortalha e procurava os fósforos no bolso.
- É um grande ponto, o Zé Cavalinho - repetiu pausado, ao mesmo tempo que expelia a primeira baforada. O forasteiro teve a clara ideia de que, antes de saber o que queria, teria de ouvir o outro, enquanto durasse o cigarro.

"Até Amanhã, Camaradas", Manuel Tiago

(Álvaro Cunhal nasceu no dia 10 de Novembro de 1913. Morreu em 2005.)

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