terça-feira, 10 de julho de 2018

Há palavras que nos beijam como se tivessem boca

Foto Hernâni Von Doellinger

A senhora sentada à minha frente faz croché. Eu leio um livro. O resto do metro espreita o telemóvel, fala para o telemóvel, escreve no telemóvel, joga no telemóvel, tira selfies com o telemóvel, põe o telemóvel entre pernas, aconchegadíssimo às intimidades, em alarmante modo de vibração. O metro inteiro é um telemóvel amarelo de duas carruagens, dois refractários e razoáveis orgasmos. Como quem não quer a coisa, a senhora sentada ao lado da senhora sentada à minha frente que faz croché desvia um olho do telemóvel e procura-me a capa do livro. Chega lá. Abana a cabeça, sentenciosa, faz cara de caso, deita-me uns olhos, ambos, num misto de decepção e de censura. Percebo-a: não leio José Rodrigues dos Santos. Leio "Poesias Completas & Dispersos", de Alexandre O'Neill, calhamaço como os do outro, mas calhamaço sem culpa de autor, calhamaço que dá gosto. Folheio-o com o respeito e o cuidado de quem folheia uma bíblia. E é. Vou naquela parte em que O'Neill me diz "A estouvaca": deitada atravessada / na estrada / a malhada / vai ser atropelada / foi. Palavra do senhor.

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