sábado, 30 de junho de 2018

Um dia vou construir um castelo...

Foto Hernâni Von Doellinger

Lições de História 24: Jonas

Jonas era profeta com escritório em Israel e Deus mandou-o a Nínive passar umas gáspeas aos assírios, que eram maus como as cobras e de uma crueldade bíblica para com inimigos e povos vencidos em geral. Jonas acagaçou-se com os perigos da demanda e tentou desobedecer a Deus, fugindo, disfarçado de Hercule Poirot, numa viagem de cruzeiro pelo Mediterrâneo. Deus levou a mal tamanha manifestação de cobardia e diletantismo, caiu-lhe em cima com uma tempestade de criar bicho e atirou-o borda fora. Jonas foi engolido por uma baleia e por lá se acomodou durante três dias e três noites. Ao fim da terceira noite, isto é, ao quarto dia, depois do pequeno-almoço, a baleia deu à Costa da Caparica e o resto da história é bem conhecido: Jonas assinou pelo Benfica e em quatro épocas já marcou 122 golos.

Também faço isto muito bem 45

Foto Hernâni Von Doellinger

Joaquim Namorado 2

Mania das grandezas 

Pois bem, confesso:
fui eu quem destruiu as Babilónias
e descobriu a pólvora...


Acredite,
a estrela Sírius, de primeira grandeza,
(única no mercado)
deixou-ma meu tio-avô em testamento.


No meu bolso esconde-se o segredo
das alquimias
e a metafísica das religiões
- tudo por inspiração!

Que querem?
Sou poeta
e tenho a mania das grandezas...


Talvez ainda venha a ser Presidente da República...

Joaquim Namorado 

(Joaquim Namorado nasceu no dia 30 de Junho de 1914. Morreu em 1986.)

sexta-feira, 29 de junho de 2018

Piratas atacam em Leça da Palmeira


Os piratas voltam a atacar em Leça da Palmeira. No fim-de-semana de 6 a 8 de Julho, à roda do Forte de Nossa Senhora das Neves (Castelo de Leça), recriação histórica e viagem ao tempo em que os velhos piratas - os da perna de pau, olho de vidro e cara de mau - se passeavam e montavam negócio em Matosinhos, uma fama que vem de longe. Mais informação, aqui.

Fafe, entre o Pionono e o Trancadas

Foto Hernâni Von Doellinger

No monte de São Jorge havia um pionono. E constava que havia outro no monte de Castelhão. Fui testemunha de ambos, embora o segundo possa não ter existido. O pionono, para mim, era uma espécie de meco que ajudava montes de pouca monta a porem-se em bicos de pés, a chegarem-se a uma certa altura, a uma altura certa, a um número redondo que desse jeito falar. Quero dizer: era uma espécie de sapato de salto alto para caga-tacos, porém ao contrário, com o tacão virado para cima e usado na cabeça. Depois tomei conhecimento do Pio IX, mas nunca percebi a relação, e acho um insulto chamar-lhe marco geodésico. Ao papa.
Assim com maiúscula, o Pionono era exactamente em São Jorge, é justo que se diga. Pionono era nome próprio, sítio, geografia. "Vou ao Pionono". Ia-se ao Pionono. Ia-se aos pinheiros pelo Natal, ia-se aos fentos para o eido ou às giestas secas para espertar a lareira do chão da cozinha, ia-se brincar aos cobóis, ia-se cagar ao monte e ia-se dar umas trancadas, e o que eu gostava da palavra trancadas, mesmo sem conseguir alcançar o que ela quereria dizer.
(As giestas também davam umas vassouras de categoria e o Trancadas era um barbeiro mesmo ao lado do tasco do Neca do Hotel, o que se revelava de uma comodidade extrema. Por falar nisso, lembro-me de descer um degrauzinho, mais cá para o centro da vila, ali entre a sombria loja da Rosindinha Catequista e a Cafelândia, mas esse era o Sr. António Grande, o segundo barbeiro do meu padrinho Américo. Eu ia lá com o meu padrinho mais o meu tio Zé da Bomba, aos sábados de manhã, que naquele tempo eram sempre de sol. Na espera lia-se "O Primeiro de Janeiro", mal eu sabia que ainda o havia de fazer. O meu padrinho Américo e o meu tio Zé da Bomba eram irmãos do meu pai, o grande Lando Bomba, e depois foram meus pais, à falta do propriamente dito, por razão de força maior.)
Hoje os montes de São Jorge e de Castelhão são casas e é o progresso. Fafe já não tem piononos. Mas, dizem-me, tem ainda a "Garrafinha" e historiadores até dar com um pau. Um deles, quem dera que não chova, ainda há-de contar esta como deve ser.

P.S. - Ando a revisitar os meus barbeiros, depois de ter começado pelo dentista. Quanto ao pionono: pio-nono será a forma "correcta" de escrever, se nos referirmos ao meco. Mas pionono pode ser também nome de doce muito popular em Espanha, na América Latina e nas Filipinas.

Offshore, se fashavore 171

Foto Hernâni Von Doellinger

Oldemar Justus 2

Um dia ele acordou
mais moço. Havia-se deitado
com uma mulher mais velha.

"Ecos & Silêncios", Oldemar Justus

(Oldemar Justus nasceu no dia 29 de Junho de 1922. Morreu em 2006.)

Mariscando 18

Foto Hernâni Von Doellinger

Leo Lynce 2

Bordando

Sempre te vejo, alegre e distraída
sobre o trabalho reclinada, a um canto
da sala, entre cambraias e filós.

Tu, que passas bordando toda a vida,
por que não bordas - tu que bordas tanto,
um parzinho de fronha para nós?

"Poesia Quase Completa", Leo Lynce

(Leo Lynce nasceu no dia 29 de Junho de 1884. Morreu em 1954.)

quinta-feira, 28 de junho de 2018

Interlúdio fotográfico 24

Foto Hernâni Von Doellinger

Colhedor de sóis

Saiu para apanhar sol. Regressou de saco cheio.

Mobiliário urbano (propriamente dito) 75

Foto Hernâni Von Doellinger

O meu barbeiro falou-me de barcos

O meu barbeiro atacou-me à traição. Falou-me de barcos. Tínhamos uma combinação tão antiga e cómoda, de só comunicarmos um com o outro por sinais, e ele apanha-me o ponto fraco e obriga-me à conversa da boca para fora. Barcos. Nós sabíamos que tínhamos também isso em comum, os barcos, mas era como se não soubéssemos, disfarçávamos silenciosamente, numa cumplicidade camarada, coisa de velhos embarcadiços. O Sr. Fernando, que é um artista de mão cheia, foi, no seu tempo de tropa, escanhoador-mor a bordo do navio-escola Sagres; e eu há três mil duzentos e setenta e três dias que sou contador de navios a bordo da minha varanda com vista para o mar (se me puser de lado).
Foi assim. Diz-me o meu barbeiro, sem mais nem menos, "Aquilo agora em Leixões os cruzeiros são uns atrás dos outros". Parece coisa de nada, não é?, apenas deixada no ar, mas oh palavras que me disseste! Leixões e cruzeiros. Senha e contra-senha. Ao ataque!, pensei eu mais com a língua do que com a cabeça, esquecendo-me de que queria estar calado. Esqueci-me também da bóia e afoguei-me no relambório. Que "Pois de facto são mais que as mães" e que "Eu é que os vejo passar, estou lá em cima a tomar conta" e que "Até os fotografo" e que "Até já conheço alguns ao longe, como por exemplo o Albatroz, o Aurora, o Boudica, o Crystal Symphony, o Queen Victoria, o Marina, o Celebrity Constellation, o Costa Pacifica, o Azura e o irmão Ventura, que ainda outro dia me passou à porta,

Foto Hernâni Von Doellinger

e que "O Porto de Leixões é um sucesso, um incansável batedor de recordes que despeja milhares de turistas nas cidades de Matosinhos e Porto, só não vê quem não quer", e que "Para este ano está previsto o melhor resultado de sempre de cruzeiros, com 113 escalas e mais de 120 mil passageiros já confimados (um aumento, face a 2017, isto é, ao período homólogo, de 13 e 23 por cento, respectivamente) - e eu disse mesmo período e homólogo e respectivamente e, sim, expliquei a percentagem entre parênteses -, e que "Um dia destes um filho da puta qualquer, sentado numa secretária em Lisboa, vai foder isto tudo". Foi assim que eu falei. Mas em ponto grande.
O meu barbeiro, que aqui atrasado não acreditou em mim quando eu lhe disse que não era mudo, estava o barbeiro mais feliz do mundo. Pasmado, de pente e tesoura suspensos no ar, como bailarina sevilhana pronta a tocar castanholas. O paleio ia de vento em popa. O meu barbeiro servia à pinta. Os barbeiros são óptimos a servir à pinta. Que "Sim" e que "Sim" e que "Sim" e que "Sim", "Sim senhor", "Não me diga", "Parece impossível". Falámos por mais de trinta anos de silêncio. Mas conversa sobre barcos leva longe. Já íamos nos fados, vejam bem. Olhei para trás e não vi terra, a minha varanda. Tive medo e parei ali. Levantei a mão direita numa saudação índia atabalhoada, fiz "Ugh!", paguei e nadei até casa.
Porque na minha rua passa o mar...

À roda da cadeira do meu barbeiro começavam a sair os primeiros acordes de La Boda de Luis Alonso. (ver e ouvir)

Is there anybody out there? 13

Foto Hernâni Von Doellinger

Raul Seixas 2

Eu já entrei vinte vezes no escritório do psicanalista
Depois paguei ao médico e depois fui ao dentista
Para ver o que eu tenho e não consigo dizer.
Perguntei a toda gente que passava na rua
Ao patrão, à minha sogra, à São Jorge na lua
Mas nenhuma dessa gente conseguiu me responder.
Por causa disso eu fui pra casa e fiquei pensando
Se era eu que estava errado com as minhas maluquices
Ou se era o mundo todo que estava me enganando.
Arrumei as malas
Deixei as perguntas na minha gaveta
Procurei saber o horário do próximo cometa
Me agarrei em sua cauda

E fui morar noutro planeta.

Raul Seixas

(Raul Seixas nasceu no dia 28 de Junho de 1945. Morreu em 1989.)

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Mr. Tambourine man

Foto Hernâni Von Doellinger

Ao nível do por banda

Exacto. Confirma-se o que dissemos no início da partida. Os movimentos de ruptura não saíram à turma anfitriã, que, inexistente nas alas e sem rasgo nos momentos de transição, falhou clamorosamente no último terço do terreno, tanto ao nível da definição quanto ao nível da finalização, não apresentando por isso lances susceptíveis de redundarem em golo. Dizer que, não obstante, tivemos o privilégio de visionar um prélio, na sua parte complementar, jogado e disputado com muito bom índice por banda quer de uma quer de outra equipa. O futebol é que ficou naturalmente a ganhar.

Eu e o meu barbeiro, em meia palavra

Foto Hernâni Von Doellinger

Eu e o meu barbeiro comunicamos por sinais. Ele sabe que comigo não há conversa: entro no estabelecimento, levanto a mão direita em saudação índia mas não digo "Ugh!", sento-me na zona de espera, espero, varejo O Jogo, olho com fastio para as folhas do Jornal de Notícias, vejo as figuras da revista Volta ao Mundo, coço a cabeça e eventualmente os colhões, espreito-me aos espelhos, espero, espero, levanto-me quando chega a minha vez, que me é indicada pelo meu barbeiro com um semigesto de cabeça, coisa cá entre os dois, aproveito os três passos de caminho para apontar se é só barba ou se é barba e cabelo, sento-me e está tudo dito. São muitos anos...
Conversa de barbeiro é uma seca. E um perigo. Os barbeiros sabem de tudo e nós, simples e indefesos clientes, não. Portanto, de navalha em punho, eles começam a falar na crise dos mísseis de Cuba de 1962 e só terminam, uma hora depois, já a socar-nos o tralhame com a escova, quando chegam ao caso do dono do café ao lado que tem a mania de deixar a janela do carro aberta, "Qualquer dia ainda se fode, com sua licença, senhoreee...", e, depois de termos saído e já irmos longe, ainda vão à porta gritar: - O senhoreee... também deixa a janela do carro aberta? Deixa? Ai é motorizada? Pois, nesse caso...
O meu barbeiro não. Comigo, nem se atreve a pegar no espelho mostra-carecas para me perguntar, no final do serviço, se está tudo bem. Já sabe que não vale a pena. Vamos direitos ao assunto, quero dizer à máquina registadora, espreito os numerozinhos verdes a ver se ainda é o mesmo preço, é, pago, recebo o troco, levanto a mão direita em saudação índia e saio sem dizer "Ugh!", que ele não estranha.
Mas, para termos chegado a este superior estádio de entendimento silencioso, precisei de me começar a impor logo no princípio, há mais de 30 anos. O meu barbeiro já sabe: som da televisão para baixo mal chego, porque a Praça da Alegria é-me insuportável. Mais: lavagem da cabeça, não. Nunca. Eu e o meu barbeiro até pode dizer-se que somos amigos, mas nada de convívio, de festinhas. Nestas coisas, a minha costela homofóbica dá de si. É uma costela flutuante, mas está lá. Por exemplo, incomoda-me também que o estabelecimento se chame "salão" em vez de "barbearia", e, ainda por cima, "salão de cabeleireiros". O meu barbeiro sabe do meu incómodo, mas neste particular mandou-me dar uma volta. São os tempos que vivemos e merecemos. Até a Barbearia Tralhão, isso sim sítio para homens de barba rija, agora também já é Cabeleireiros Pereira Tralhão. O que é que se há-de fazer?

Não sei o que deu hoje ao meu barbeiro. Resolveu falar. E eu, que até já me tinha convencido de que éramos mudos, mandei-o calar com os olhos, quase o fulminei. Mas ele fez-se de ceguinho e continuou com o relambório. Os barbeiros de um modo geral são assim, falam sempre mesmo que a gente não lhes responda. E o meu barbeiro ontem estava igual aos outros barbeiros, abriu o livro. Porque conversa de barbeiro tem técnica.
O meu barbeiro começou pela política, quer-se dizer: pelas viagens dos políticos à pala da Galp. O que até me veio a calhar para continuar calado, porque não percebo nada de política e, além disso, não gosto de dizer palavrões em público. Perante o meu militante silêncio, o meu barbeiro passou para o futebol, quer-se dizer Bruno de Carvalho, buscas no Benfica, jogos comprados, a Selecção que joga uma miséria, o Francisco J. Marques que é melhor do que o Pedro Guerra, e eu nada. O meu barbeiro tentou-me, então, com o Trump. Valha-me Deus, antes de almoço não, lá se me ia o apetite. E as notícias? Quer-se dizer: o Manuel Luís Goucha que afastou a Teresa Guilherme? E a Cristina Ferreira? E a Fátima Lopes? E o Malato? E a Sónia Araújo mailo Jorge Gabriel. Também não. Mantive-me de boca fechada, até para não ter de lhe explicar o que está por detrás destas chamadas figuras públicas e destas alegadas notícias.
O meu barbeiro pareceu desistir. Calou-se, magoado. E assim esteve, desistente, calado e ressentido, durante uma boa meia hora. Até que, indo ao fundo da sua alma, arrancou um imenso suspiro (e eu logo a pensar: vem-me este agora falar dos migrantes náufragos que ninguém quer...), arrancou um grande suspiro, dizia eu, suspendeu a tesoura trabalhadeira num gesto teatral e atirou-me, certeiro : - E este tempo?!...
Ah!, bom, o tempo. Falando do tempo, assim já nos entendemos: tivemos ali conversa até à hora de almoço e despedimo-nos de abraço...

Na minha rua passa o mar 31

Foto Hernâni Von Doellinger

Guimarães Rosa 6

Em termos, gostava que morasse aqui, ou perto, era uma ajuda. Aqui não se tem convívio que instruir. Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso...

"Grande Sertão: Veredas", Guimarães Rosa

(Guimarães Rosa nasceu no dia 27 de Junho de 1908. Morreu em 1967.)

terça-feira, 26 de junho de 2018

Festas da Senhora de Antime 2018 (programa)

Foto Hernâni Von Doellinger

Festas do Concelho de Fafe, em honra de Nossa Senhora de Antime. De 6 a 9 de Julho. Mais informação e programa, aqui.

A porta

Foto Hernâni Von Doellinger

Lições de História 23: Aristeu

Aristeu era filho de Apolo com Cirene. Foi criado por ninfas na Líbia, aprendeu a coalhar leite e tornou-se pastor, sendo adorado como protector de caçadores e rebanhos e considerado o inventor da apicultura e do olival. É representado como um jovem pastor com um cordeiro, mais ou menos à maneira do nosso São João, mas de manjerico e pirilau ao léu.
Cansado de ser um deus menor, Aristeu aprendeu a contar pelos dedos e dedicou-se às matemáticas, adoptando o astuto cognome de o Velho - Aristeu, o Velho -, isto já para aí trezentos anos antes de Cristo ter vindo ao mundo. Mais de vinte séculos depois meteu-se no comboio e estabeleceu-se em Fafe, com a Loja Nova, extraordinária catedral de mercearia fina e grossa, drogaria e bebidas várias, alfaias agrícolas, verguinha e outro material de construção, louças e todo o tipo de ferragens, que ocupava quase um quarteirão inteiro, ao lado do Peludo e em frente à Casa da Cera, com a Feira das Galinhas atrás. O Senhor Aristeu da Loja Nova, fafense excelentíssimo, era um vivaço. Gentil, elegante, conservador e culto, molageiro com as mulheres, às vezes vestia bata de cotim no trabalho e tinha sempre uma piada na ponta da língua. A Loja Nova morreu de velha.

Mobiliário urbano (propriamente dito) 74

Foto Hernâni Von Doellinger

José Tolentino Mendonça

A infância de Herberto Helder 

No princípio era a ilha
embora se diga
o Espírito de Deus
abraçava as águas


Nesse tempo
estendia-me na terra
para olhar as estrelas
e não pensava
que esses corpos de fogo
pudessem ser perigosos


Nesse tempo
marcava a latitude das estrelas
ordenando berlindes
sobre a erva


Não sabia que todo o poema
é um tumulto
que pode abalar
a ordem do universo agora
acredito


Eu era quase um anjo
e escrevia relatórios
precisos
acerca do silêncio


Nesse tempo
ainda era possível
encontrar Deus
pelos baldios


Isso foi antes
de aprender a álgebra


"Os Dias Contados", José Tolentino Mendonça

(Tolentino Mendonça foi hoje anunciado como arcebispo e novo responsável pelo arquivo secreto do Vaticano. É pena.)

De sonho

Foto Hernâni Von Doellinger

Conselho odontológico

Cheguei muito tarde ao dentista. Já passava dos quarenta. Evidentemente não sou exemplo para ninguém, também neste departamento, mas a verdade é que, apesar de tantos anos de aparente desmazelo odontológico, eu tinha uma cremalheira que era um mimo - foi o que me disse o doutor, muito admirado, quando lhe arreganhei a tacha pela primeira vez. Palavras para quê? Eu usava pasta Pasta Medicinal Couto. Os meus problemas com os dentes começaram, portanto, quando fui ao dentista.
E estreei-me em grande, numa célebre extracção de um siso, que, não é para me gabar, foi uma desgraça. O dente estava muito apegado a mim, eram décadas de convívio e recusava-se a sair, coitado. Anestesia atrás de anestesia, o dentista escarafunchava e escarafunchava, puxava e puxava, pedia desculpa, nunca tinha acontecido, inventava alavancas que não alavancavam nada, fazia o pino, o quatro e o oito, tentou o flique-flaque à retaguarda e o mergulho empranchado de braços abertos, escarafunchava e puxava, o homem suava copiosamente e eu sem guarda-chuva, parava para se desfazer das cambras, ralhava com as afogueadas assistentes que pareciam baratas tontas, pedia desculpa, nunca tinha acontecido, e elas, quase em lágrimas e em coro: nunca tinha acontecido, mandou vir um escadote, a escada Magirus dos Sapadores, uma marreta da obra em frente e o Regimento de Artilharia da Serra do Pilar, por esta exacta ordem, escarafunchava e escarafunchava, puxava e puxava, desculpe, nunca tinha acontecido, e nada. Que daqui não saio, daqui ninguém me tira, insistia o filho da puta do dente, agarrado à gengiva como uma lapa, e já me estava a meter nervos.
Eu era uma poça de sangue. A minha boca era já duas, derivado ao escarrapacho forçado. Tinha a boca pior que o chapéu de um pobre - e foi ali que eu percebi na carne o significado da infeliz expressão. Se eu pudesse falar, gritaria: chamem-me um carro!, mas eu não podia falar, porque não sentia a boca e isso até era do mal o menos.

(Por outro lado, o dentista passa muito bem sem a nossa opinião. Já repararam que o dentista só faz perguntas depois de nos atafulhar a boca com metade dos móveis do consultório e a mangueira do jardim? Respondemos como? Só se for pelo nariz, mas isso é número arriscado e praticável apenas em caso de profunda constipação. E já deram fé que a gente vai lá queixar-se do dente de baixo e o dentista trata do dente de cima? E que geralmente faz bem?)

O dente cedeu, por implosão controlada, ao fim de uma manhã inteira de pancadaria. O dente era eu. Eu era um destroço, um sobrevivente inesperado de Alcácer Quibir. Vi-me ao espelho: tinha os lábios esgaçados de orelha a orelha, parecia o Joker do Jack Nicholson. Para me confortar, o dentista disse-me que ainda ia ficar pior. E ficou. No dia seguinte: os cantos da boca em ferida, a cara feita num bolo, inchada e negra.
Por causa da dose cavalar de anestesia, andei semana e meia a babar-me e com um falar esquisito. A minha mulher queria internar-me. Safei-me por uma unha negra à consulta externa do Magalhães Lemos.
Mas isso passou. A sintomatologia física desapareceu. A memória da carnificina é que não. Padeço de stress pós-traumático. Ainda hoje é uma tortura ir ao... barbeiro. Entro em pânico. Estão a ver? A mesma espera, a mesma televisão ligada na Praça da Alegria, a mesma bata branca, a cadeira, a babete, os utensílios cromados, pontiagudos e cortantes, o zzzzzzzzz assobiado do secador que parece o zzzzzzzzz assobiado de uma broca, a televisão ligada na Fátima Lopes, estão a ver? Estão a ouvir? Estão a perceber a minha agonia?
Quer-se dizer: houve aqui uma transferência qualquer que eu não sei explicar. Porque com o meu dentista corre tudo muito bem, farto-me de o aconselhar a toda a gente. O sanguinolento episódio do dente do siso não passou disso e ganhei esta bonita história para contar. Para a semana vou lá outra vez (a terceira, já este ano) e portanto adeus até ao meu regresso.

Offshore, se fashavore 170

Foto Hernâni Von Doellinger

Luís Edmundo 2

Viva la Gracia!

Calle Alcalá: Manolita
Que vais a Puerta del Sol.
Consuelo, Concha ou Paquita,
És de Madri, senorita,
De Segóvia ou de Ferrol?

Tens dos versos de Zorilla
A essência meridional.
Com o teu manton de manilla
Lembras noites de Sevilla
Perfumes de naranjal.

Dias de toiros, fanfarras,
O estouvamento febril
Das seguidillas bizarras
Com Xerez e com guitarras
E requebros de quadril.

De onde vens, flor rescendente,
Nessa alegria louçã
Que perturba toda gente?
De um livro de Benavente?
De um quadro de Zurbarán?

E Manolita, apressada,
Indiferente e veloz
Nem vê minha alma abrasada
Que a segue pela calçada...
Viva la Gracia. Por Diós!

"Rosa dos Ventos", Luís Edmundo

(Luís Edmundo nasceu no dia 26 de Junho de 1878. Morreu em 1961.)

Também faço isto muito bem 44

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 25 de junho de 2018

Em pulgas

Estou em pulgas. Logo à noite. O meu cão vai levar-me a jantar fora.

Palavras para quê? É um artista português...


Esqueçamos, por momentos, Cristiano Ronaldo. E Bruno de Carvalho. (Por falar nesse, a que horas é que ele dá hoje?) Puxemos à memória aquele célebre anúncio da televisão a preto e branco com um homem (africano do Império, por sinal) a abocanhar uma cadeira e a fazê-la andar à roda acima da cabeça. Aquilo é que eram dentes fortes, gengivas sãs, boca saudável. E tudo porquê? Porque o artista era um artista português e usava Pasta Medicinal Couto.
Eu, que sou dos tempos áureos do Restaurador Olex, também usei a Couto durante mais de um quarto de século, julgo que inicialmente "receitada" pelo Quinzinho da Farmácia, o "médico" dos pobres de Fafe, o melhor médico de família que Deus ao mundo botou, ainda os médicos de família não tinham sido inventados. Aquela coisa de ser "Medicinal" no nome do meio também me convencia, tenho de confessar. E só a larguei após sucessivas tentativas falhadas para fazer sequer mexer uma cadeira de plástico com os dentes e depois de ir ao dentista pela primeira vez na vida, aos 45 anos.
A Couto nasceu no Porto há cem anos, quando não era natural um preto de cabeleira loira e um branco de carapinha. A fórmula da "Pasta Medicinal" foi registada a 13 de Junho de 1932 e prometia não só lavar os dentes, mas também protegê-los dos malefícios da sífilis e evitar as infecções das gengivas. Em 2001, por imposição das normas comunitárias relativas a este tipo de produtos, a marca foi obrigada a deixar cair a tão sedutora quanto conveniente designação de "Medicinal", passando a chamar-se simplesmente Pasta Dentífrica Couto. Até hoje.
Em 2012, o então principal accionista da empresa Couto, em Vila Nova de Gaia, anunciou que tinha dois pretendentes à compra da marca. Um da área da cosmética e outro do sector farmacêutico, ambos com intenções de "aumentar mais as vendas". O negócio deveria ser fechado até 2017. Não sei de foi. Mas também hoje em dia as cadeiras são muito mais leves...

Mobiliário urbano (propriamente dito) 73

Foto Hernâni Von Doellinger

Está dito! 5

Era uma vez.

Foi você que lhe chamou Transparente?

Foto Hernâni Von Doellinger

Epifania

Ele viu a Luz. Viu e disse: - O Dragão é mais bonito.

Vida de cão 347

Foto Hernâni Von Doellinger

Ruy Barata 5

Foi assim

Foi assim,
como um resto de sol no mar,
como os lenços da préamar,
nós chegamos ao fim.

Foi assim,
quando a flor ao luar se deu,
quando o mundo era quase meu,
tu te foste de mim.


"Volta, meu bem", murmurei.
"Volta, meu bem", repeti.
"Não há canção nos teus olhos,
nem amanhã nesse adeus!"


Horas, dias, meses se passando
e, nesse passar, uma ilusão guardei:
ver-te novamente na varanda,
a voz sumida e quase em pranto,
a murmurar "meu bem, voltei".


Hoje essa ilusão se fez em nada
e a te beijar outra mulher eu vi,
Vi no seu olhar envenenado
o mesmo olhar do meu passado
e soube então que te perdi.


Ruy Barata

(Ruy Barata nasceu no dia 25 de Junho de 1920. Morreu em 1990.)

domingo, 24 de junho de 2018

Mobiliário urbano (propriamente dito) 72

Foto Hernâni Von Doellinger

Noite de S. João, segundo Fernando Pessoa

Noite de S. João para além do muro do meu quintal

Noite de S. João para além do muro do meu quintal.
Do lado de cá, eu sem noite de S. João.
Porque há S. João onde o festejam.
Para mim há uma sombra de luz de fogueiras na noite,
Um ruído de gargalhadas, os baques dos saltos.
E um grito casual de quem não sabe que eu existo. 


"Poemas Inconjuntos", Alberto Caeiro

Na minha rua passa o mar 30

Foto Hernâni Von Doellinger

Pedro Oom 5

Poema

Tua boca
é um dia estreito
cheio de moscas
De noite
tem a cor azul-verde
dum veneno
como o mar.

Pedro Oom

(Pedro Oom nasceu no dia 24 de Junho de 1926. Morreu em 1974.)

Mariscando 17

Foto Hernâni Von Doellinger

Joaquim Manuel de Macedo 6

Pois bem. Augusto apresentou-se. A sala estava ornada com boa dúzia de jovens interessantes: pareceu ao estudante um jardim cheio de flores ou o céu semeado de estrelas. Verdade seja que, entre esses orgulhos da idade presente, havia também algumas rugosas representantes do tempo passado; porém isso ainda mais lhe sanciona a propriedade da comparação, porque há muitas rosas murchas nos jardins e estrelas quase obscuras no firmamento.

"A Moreninha", Joaquim Manuel de Macedo

(Joaquim Manuel de Macedo nasceu no dia 24 de Junho de 1829. Morreu em 1882.)

Caminho 510

Foto Hernâni Von Doellinger

José Luis Sucasas 2

A confesión do criado Ensión

[...] 
Entramos os dous na taberna, eu aínda pampo e sen saber moito que facer. Busquei desesperado a complicidade dos ollos do taberneiro, e cando os tiven a tiro, pregunteille cun aceno quen carallo era o home aquel. Engruñou os ombreiros e púxose a facer os cafés. Xa sentados, o descoñecido díxome que lera o meu artigo sobre o bispo e preguntoume se eu pensaba que era certo o que alí contei. "Home... eu non estaba alí... e os que mo contaron tampouco, así que...", díxenlle. "E logo quen cho contou?... se é que se pode saber, claro..." Eu díxenlle que, sobre todo, a anónima Historia Compostellana e a Historia de España de Juan de Mariana. "... xa... xa..., pero eses libros falan dunha trampa que lle preparan ao bispo e que os tales criados Nadón, Cadón e Ensión son falsas testemuñas ao servizo dos urdidores da celada..." O home quedóuseme mirando en silencio un bo anaco. "... e o teu artigo nada conta diso e da por certo a sodomía e maila alta traizón..."
[...]

José Luis Sucasas, em Praza Pública

(José Luis Sucasas nasceu no dia 24 de Junho de 1959. Morreu em 2017.)

sábado, 23 de junho de 2018

Interlúdio fotográfico 23

Foto Hernâni Von Doellinger

Está dito! 4

Digo-lhe uma coisa.

A ver navios 174

Foto Hernâni Von Doellinger

António Jacinto 5

Autobiografia

O teu sorriso
espelhado em meus olhos, Mãe;
Um pouco de Poesia
a ilimitar todo o presente;
E a Vida sorrindo também
ao futuro humano que se pressente.

"Poemas", António Jacinto

(António Jacinto nasceu no dia 28 de Setembro de 1924. Morreu no dia 23 de Junho de 1991.)

sexta-feira, 22 de junho de 2018

Também faço isto muito bem 43

Foto Hernâni Von Doellinger

Está dito! 3

Deixa-me que te diga.

Na minha rua passa o mar 29

Foto Hernâni Von Doellinger

Antonio Fernández Pérez 3

Collín o cinseiro da mesa de noite e tireillo á cara. O cinseiro é de aluminio, livián coma papel de fumar. Lástima que non fose de ferro.
Onte de mañá volveu ó meu cuarto, esta vez en rutinaria visita médica. Non tardamos en reanudar o altercado da víspera, pero agora era eu quen levaba a batuta e lle cantaba as corenta. Díxenlle tantas que por fin o provocador saíu botando muxicas.

"Crónicas de Onte e de Hoxe", Antonio Fernández Pérez 

(Antonio Fernández Pérez nasceu no dia 22 de Junho de 1909. Morreu em 1999.)

Caminho 509

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 21 de junho de 2018

Quando me mandaram oferecer vinho ao Saddam

Foto Hernâni Von Doellinger

Isto foi para aí em 2002, portanto um ano antes da invasão do Iraque, e aconteceu quando chegou a Portugal a inesperada porém impactante notícia de que Saddam Hussein se perdia de amores pelo nosso Mateus Rosé. O meu jornal mandou-me logo escrever uma artigalhada sobre o momentoso assunto e comprar uma caixa do mais famoso vinho português para oferecer, "com um cartãozinho simpático", ao ditador de Bagdade. Perante a minha perplexidade telefónica a propósito da segunda parte do serviço, Lisboa explicou-me o jornalístico intuito da genial ideia, sufocando-me à nascença todos os mas: "Se o gajo nos responder depois a agradecer, é o máximo, dá uma capa fantástica. Mas se não disser nada... também dá uma coisa gira. Então vá..."
E eu fui. Comprei o vinho e escrevi o texto. Um texto pequeno que andava à volta disto: o Saddam gosta de Mateus Rosé. Era capaz de ter também alguma graça, já não me lembro, mas quando digo andar à volta é mesmo andar à volta, fazer chouriço, meter palha, usar e abusar da técnica de composição musical da variação (e fuga), porque a "notícia" não tinha mais nada para dizer, era oca por dentro. E foi manchete no dia seguinte.

(Permitam-me abrir aqui um parêntese pedagógico, para proteger os caros leitores da tentação de conclusões precipitadas e injustas acerca do meu jornal. Deixem-me esclarecer o seguinte: num certo sentido, o 24horas foi o precursor do jornalismo que hoje se faz em Portugal - um jornalismo de títulos, colorido e imaginativo, a que, para ser perfeito, só falta o pequeno pormenor da informação. Hoje os jornais portugueses são todos iguais ao 24horas. Uma diferença apenas os separa: o 24horas era, nos seus bons tempos, o melhor pior jornal do País; era um mau jornal muito bem feito. E ficava barato ao dono. Depois veio a rapaziada e tomou conta.)

Meti a caixa de vinho num armário da redacção. Eu já tinha aprendido que as geniais ideias vindas de Lisboa padeciam de tesão breve e alzheimer. Regra geral, no dia seguinte os nossos criativos e bem-intencionados chefes já não se lembravam das figuras tristes que nos tinham mandado fazer no dia anterior. E mandavam-nos fazer outras. Assim foi.
Em Dezembro de 2003 apanharam Saddam e eu pensei: "Agora é que era de lhe mandar o Rosé, para lhe animar o Natal na prisão". E deixei-me estar. O ex-presidente iraquiano foi executado três anos depois, como se viu no YouTube, e as garrafas lá continuaram no armário, até ao dia em que Lisboa veio ao Porto anunciar que o Porto ia fechar para salvar o jornal. Isto é, para salvar Lisboa. Começava o ano de 2009 e desfizeram-se de nós. Eu trouxe para casa duas garrafas do Mateus Rosé de Saddam Hussein.
O 24horas acabou por não se safar, mas "Lisboa" sim e é o que eu lhes estimo. As duas garrafas de Mateus Rosé ainda cá estão, a fazerem de pai e mãe de uma outra, de aguardente do Salazar, parece que engarrafada pelo próprio, como me garantiu, no acto da oferta, o sobrinho-neto do nosso estimado ditador. Estão bem umas para as outras, as garrafas. E os outros também.

(1. Texto escrito e publicado no dia 9 de Março de 2012. O jornal 24horas nasceu em 1998 e morreu oficialmente em 2010, um ano depois de os seus alegados responsáveis terem liquidado a sangue frio a Redacção do Porto. Podem limpar as mãos à parede. Mas tinha piada o pasquim, que até chegou a ser bem feito, e é a bíblia do jornalismo que hoje se faz em Portugal.
2. Fernando Guedes, filho do fundador da Sogrape e presidente da multinacional portuguesa nas décadas de oitenta e noventa, morreu ontem, aos 87 anos.)

"Fotolegendas" no Museu do FC Porto

Foto GASPAR DE JESUS

Bruno Neves, Gaspar de Jesus, Malacó, Manuel Lopes e Ricardo Pereira. Cinco fotojornalistas de elite, eles próprios lendas vivas da fotografia e do jornalismo em Portugal, foram testemunhas e guardadores dos maiores acontecimentos do Porto, clube e cidade, na última metade do século XX. Reúnem-se agora, pela primeira vez, numa exposição colectiva de memória e memórias. Título: "Fotolegendas". Local: Museu Futebol Clube do Porto. Inaugura amanhã, pelas 12 horas, na Sala Multiusos, e estará aberta ao público, das 10 às 19 horas, até ao dia 5 de Agosto de 2018, com entrada livre. Mais informação, aqui.

Massas

Gostava de uma boa massa à lavrador, de uma boa massa de marisco e sobretudo de uma boa massa de bacalhau. Quanto à massa de ar quente, não é que desgostasse, mas afligia-o a flatulência.

Na minha rua passa o mar 28

Foto Hernâni Von Doellinger

Machado de Assis 6

A uma senhora que me pediu versos

Pensa em ti mesma, acharás
Melhor poesia,
Viveza, graça, alegria,
Doçura e paz.

Se já dei flores um dia,
Quando rapaz,
As que ora dou têm assaz
Melancolia.

Uma só das horas tuas
Valem um mês
Das almas já ressequidas.

Os sóis e as luas
Creio bem que Deus os fez
Para outras vidas.

Machado de Assis

(Machado de Assis nasceu no dia 21 de Junho de 1839. Morreu em 1908.)

Mariscando 16

Foto Hernâni Von Doellinger

Graça Aranha 3

Cessaram as vozes. Os homens se agruparam em torno do cadáver, rezando como fantasmas loucos. Poças e fios vermelhos manchavam o sulco. A camada de argila, lisa, escorregadia como uma couraça, tornava o seio da terra impenetrável ao sangue, que sorvido pelo sol se evaporava e dissolvia no ar. Era a rejeição do sacrifício, o repúdio da imolação, rompendo a cruenta tradição do passado. A nova Terra juntava a sua contribuição aos límpidos ideais dos novos homens...

"Canaã", Graça Aranha

(Graça Aranha nasceu no dia 21 de Junho de 1868. Morreu em 1931.)

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Também faço isto muito bem 42

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 90

Sem rodeios
"Deixemo-nos de rodeios", disse ela. Ele despiu-se.

Bigodes
Tinha um belo bigode. Elegante, ralo, fino, um bigode à Errol Flynn. Nada de assombroso realmente, mas para mulher não estava mal...

Francamente
Era um fulano a quem não se podia pedir uma opinião sincera. Ele dava-a.

Na véspera de Portugal
Hoje é véspera de Portugal. Amanhã é Portugal. Depois de amanhã é segunda-feira.

Sinceramente
"Mente-me, que eu gosto", disse ela. "Por isso é que te amo tanto", disse ele.

Uma questão de timing
Farto de ter razão antes do tempo, começou a chegar atrasado ao emprego.

Coração de ouro
Tinha um coração de ouro. Pô-lo no prego e comprou um carro em segunda mão.

Machão
Macho, estava ali. Com mulheres, nada!...

Maricas
Ficava-lhe mal. Só andava com mulheres.

Está dito!
Eu podia por exemplo.

Está dito! 2
O que eu digo é o seguinte.

Sensibilidade e bom gosto
Eleutério tinha um desgosto muito grande no nome que lhe deram. Mudou para Adalsindo e agora é um homem feliz.

Caminho 508

Foto Hernâni Von Doellinger

Antón Zapata García

Miña nai - se ll-ôs pedían -
facía, a veces, cantares,
e botaballes pimenta
contra os caciques e alcaldes.

Na Fala dos Bergantiños
arrulóume miña nai,
cantando doces cantigas
da montana e veiramar.

"Cantares Galegos", Antón Zapata García

(Antón Zapata García nasceu no dia 26 de Fevereiro de 1886. Morreu no dia 20 de Junho de 1953.)

terça-feira, 19 de junho de 2018

Só destes, tenho sete 24

Foto Hernâni Von Doellinger

Com a mostarda no nariz

Estava piúrsico. Hercúleo. Ulíssico. Ben-húrico. Sansónico. Macístico. Spartáquico. Numa só palavra, estava ali o homem que domina a pantera.

De Mundial!

Foto Hernâni Von Doellinger

Sob pressão

Escrevia muito bem sob pressão. Cinco ou seis fininhos bebidos de penálti, e era um camões.

Vida de cão 346

Foto Hernâni Von Doellinger

Xoán Vidal Martínez 3

Augas da mar de Sanxenxo
seculares, augas vivas
convén que vos diga adeus,
dándovos a despedida,
que o novo pode morrer,
mais o vello non ten vida

"Palabra Llana", Xoán Vidal Martínez

(Xoán Vidal Martínez nasceu no dia 29 de Março de 1904. Morreu no dia 19 de Junho de 1994.)

Caminho 507

Foto Hernâni Von Doellinger

Óscar Ribas 3

Na época em que decorreu este episódio, a pitoresca vila de Catumbela constituía um grande mercado, aonde numerosas caravanas de negros, carregados de borracha, cera, marfim, mel e outros géneros gentílicos acorriam na mira de permutar com o europeu, em troca, a apreciada aguardente, pólvora, armas, fazendas e outros produtos. Mas a escravatura - essa mácula do passado - formava o manancial mercantil, tão propício ao branco como ao preto.

"Ecos da Minha Terra", Óscar Ribas

(Óscar Ribas nasceu no dia 17 de Agosto de 1909. Morreu no dia 19 de Junho de 2004.)

Na minha rua passa o mar 27

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 18 de junho de 2018

A minha avó era uma santa

A minha avó de Basto tinha uma sociedade infalível com São Bento da Porta Aberta. Em questões de pele e outras coisas ruins, os dois juntos eram uma limpeza.
Aí pelos meus vintes, eu tinha uma plantação de cravos no braço direito, uma vez a minha avó viu, pediu-me licença e disse que ia falar com São Bentinho sobre o assunto. Quando queria falar com São Bentinho, a minha querida avó Emília ia pessoalmente, a pé, pequerricha e já velhinha, desde Passos, Cabeceiras de Basto, até Rio Caldo, em Terras de Bouro, onde o santo morava. Os cravos desapareceram.
Anos depois, o meu filho era criança e apareceu-lhe um cravo numa pálpebra, uma vez a minha avó viu, pediu-me licença e disse que ia falar com São Bentinho sobre o assunto. Quando queria falar com São Bentinho, a minha doce avó Emília ia pessoalmente, a pé, ainda mais pequerricha e ainda mais velhinha, desde Passos, Cabeceiras de Basto, até Rio Caldo, em Terras de Bouro, onde o santo morava. O cravo desapareceu.
Se eu puxasse pela cabeça, tenho a certeza de que me lembraria de um terceiro e definitivo milagre da minha avó, mas não quero arranjar problemas ao Vaticano.
O Vaticano tem muito mais que fazer do que ocupar-se com a comezinha história da bó de Basto, que, cada vez mais velhinha e pequerricha, ia a pé entender-se pessoalmente com São Bentinho sempre que era preciso. O Vaticano tem coisas muito mais importantes a tratar: por exemplo, convencer-nos de que João Paulo II é santo. Vai levar anos, e eu não acredito.

A rebentar pelas costuras

Foto Hernâni Von Doellinger

Maricas

Ficava-lhe mal. Só andava com mulheres.

Offshore, se fashavore 169

Foto Hernâni Von Doellinger

Está dito! 2

O que eu digo é o seguinte.

Come on, come on!...

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 17 de junho de 2018

Sensibilidade e bom gosto

Eleutério tinha um desgosto muito grande no nome que lhe deram. Mudou para Adalsindo e agora é um homem feliz.

I want to ride my bicycle 53

Foto Hernâni Von Doellinger

Bigodes

Tinha um belo bigode. Elegante, ralo, fino, rebelde, um bigode à Errol Flynn. Nada de assombroso realmente, mas para mulher não estava mal...

Na minha rua passa o mar 26

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 16 de junho de 2018

No Diário de Notícias está tudo bêbado?

O jornal Diário de Notícias de Lisboa publica um artigo copiado do jornal New York Times da América, e publica-o em inglês. A interessante e extensa prosa, que infelizmente não sei o que quer dizer, chama-se de nome completo Spain and Portugal Play a Draw for the Ages, Starring a Player for All Time, e eu só percebi aquela parte do bítala da bateria, o Ringo Starring. Mais uma vez, já se nota o dedo do meu ídolo Ferreira Fernandes.

Desgraçadamente, o jornal Diário de Notícias de Lisboa está fechando portas, às prestações. De momento vai passar a semanário. Percebi isso numas declarações da directora executiva Catarina Carvalho em que ela parecia querer explicar que não.

Mobiliário urbano (propriamente dito) 71

Foto Hernâni Von Doellinger

Está dito!

Eu podia por exemplo.

Caminho 506

Foto Hernâni Von Doellinger