quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

O dia em que o juiz Rui Rangel e o presidente Luís Filipe Vieira foram apanhados sem carta

A minha sogra tem um ouvido que só visto e papa os programas todos da RTP1 desde a "Sónia e o Jorge" até ao "Gordo" ou "Senhor Fernando Mendes", consoante a disposição, passando pelo "Malato", pela "Tânia", pelo "Dr. Ramos", pela "Dina", pelo Calcitrin e pela frigideira mágica. Só se levanta da televisão para almoçar, e continua a ver. Nos intervalos às vezes há notícias e a minha sogra gosta de me pôr ao corrente. Diz-me, ainda ontem: - Lá estão eles, Hernâni, agora não sabem outra coisa, é Socras pra cima e Socras pra baixo, não deixam o homem em paz, está bem que se calhar ele não governou satisfatório, mas também já é demais...
Eu conto-lhe a verdade. Explico-lhe que é uma "notícia" em directo de Vila Verde e que estão a falar dos lenços de namorados derivado ao Dia dos Ditos que se realiza dentro em breve. Ela olha para mim com desprezo - sabe muito bem que lhe estou a "mentir"...
O aparelho de TV fala da Catalunha e de Carles Puigdemont, que parece (parece) ter desistido do seu independentismo - isto foi hoje -, e a minha sogra queixa-se-me: - Está a ver, Hernâni, você não se acredita no que eu lhe digo, olhe eles a malharem outra vez no Socras, coitado do pobre de cristo...
Há bocado chamou-me de repente, na abertura do Jornal da Tarde: - Olhe tantos que foram apanhados sem carta...
Eu olhei e era a "notícia" do juiz Rangel, do Benfica e do presidente do Benfica. Ia dizer "Ó Joaquininha..." mas não disse, nem abri a boca. Terem sido apanhados sem carta também é uma boa história...

P.S. - Diz-me uma vez a minha sogra: - Ó Hernâni, veja o que quer esta carta da Caixa.
Eu vi e expliquei: - Isto não é da Caixa, Joaquininha, é um reclame daqueles aparelhos para ouvir, quer experimentar?
- Falta pagar? Eu tenho tudo em dia... - respondeu-me a minha sogra. E eu insisti, com o volume no máximo:
- Aqueles aparelhos para meter no ouvido, para ouvir melhor!...
- Para que é que preciso disso, parece tolo, eu ouço muito bem... - resolveu a minha sogra, e contra isso nada.

Vida de cão 299

Foto Hernâni Von Doellinger

Estribilhos palermas que ganharam a Eurovisão 3

Boom bang-a-bang-bang
Boom bang-a-bang-bang
Boom bang-a-bang-bang

(Boom bang-a-bang, canção do Reino Unido, 1969) 

Mobiliário urbano (propriamente dito) 53

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 67

Mais leve que o ar
Há quem seja magro, mas Hélio abusava. Um dia levantou voo... 

Período de compensação de neutralizações
Esgotados, os seis minutos de descontos pediram ao árbitro que acabasse o jogo... 

Não sei quem sou por dentro de mim
Não sei quem sou por dentro de mim. Olho-me no espelho do elevador, não tenho por onde fugir, e vejo-me apenas por fora. O espelho do elevador é o meu espelho único. Tento ser sincero com ele, justo comigo mesmo, olho-me olhos nos olhos mas só vejo os olhos que olham para mim. Vejo que os olhos que me olham vêem um velho sem passado e, parece-me, com pressa de envelhecer ainda mais. Saio à rua e caminho sem saber quem sou por dentro de mim.

Das quentes e boas à fresca e doce 
"Quentes e boas" são as castanhas, assim chamadas derivado à própria cor. Este Inverno por acaso até só foram quentes, às vezes nem isso, de resto apresentaram-se geralmente uma boa merda - secas, bichosas, bolorentas até. Mas ao que interessa: o pregão era, e ainda é, "Quentes e boas!", ou, como se dizia em Fafe, "Castanhas assadas a vapor, oh que boas, oh que boas!..."
No Verão da minha terra já a conversa era outra. Umas abençoadas senhoras andavam pela caloraça das feiras e romarias vendendo copos de água de mina adoçada com açúcar amarelo e um remoto gosto a limão. Em cima da cabeça a rodilha e por cima da rodilha, consoante o uso dos sítios, uma bilha de barro ou um cântaro de lata revestido a cortiça. Anunciavam "Fresca e doce!", e desatavam a fugir, de socos na mão, mal se precatavam do fiscal da Câmara...

Fonte próxima
A dois passos de casa, a abençoada borla da água fresquinha escorrendo cristalina da bica. Um consolo nas tardes de Verão, lavagem do carro nas manhãs de sábado...

Fonte segura
Após quatro braços, duas pernas, sete costelas, três cabeças e trinta e seis cântaros partidos, a Junta de Freguesia resolveu finalmente fazer obras de consolidação e requalificação. Agora sim, Leonor...

Fonte confidencial
Descobri-a sem querer aí num sitinho, dá-me setenta e três garrafões por dia, e mais não digo...

Fonte limpa
Dois banhos por semana: à terça e à sexta.

Há fontes e fontes
Fonte baptismal, fonte de vida, fonte luminosa, fonte de alimentação, fonte de ignição, fonte da juventude, fonte de inspiração, fonte de transpiração, Fontes de Onor, Fonte Arcada, Fonte da Telha, Fonte das Sete Bicas, Fonte do Bastardo, Fonte do Santo, Fonte da Cana, José Fonte, Fontes Pereira de Melo, Fontes Rocha, Fontes de Alencar, Adios rios adios fontes.

Só destes, tenho sete 19

Foto Hernâni Von Doellinger

José Fernandes Fafe 2

Exegese

De que é feito esse amor?, perguntam-me e não sei...
Da matéria da noite mais impávida,
onde as estrelas inscrevem uma lei...

Da estrada longa e da cegueira ávida
com que quiseste povoar de amor os ermos...
Longe, os cães das quintas ladravam-te com raiva

(Vejo o teu gesto, um franciscano aceno,
vejo a minha mão crispar-se, dolorida,
vejo unir-nos num abraço o desespero...)

Das trevas, do linho negro em que tecemos
a manta na noite dos pobres estendida...
(Senhora, acamaradando-se dói menos...)

Das mãos dadas, pelo sono dos casais, pela Vida,
pela emboscada - onde caíste de cansaço
e me rasgaram a rubra e funda ferida

donde manam - o baço tempo, o alaranjado lume
e a inexorável frialdade de aço
que um anjo tetular em si reúne. 

José Fernandes Fafe

(José Fernandes Fafe nasceu no dia 31 de Janeiro de 1927. Morreu em 2017.)

Offshore, se fashavore 114

Foto Hernâni Von Doellinger

Luís de Montalvor 2

Infante
 
Dá-me o sol a minha fronte. Doloridos
e chagados meus pés descalços vão fugindo...
- Memórias dos meus doidos passos incontidos!
- Ó meu rumor do mundo em pétalas abrindo!


Ó corças que correis pela tarde desferindo
o balido ligeiro que alonga os ouvidos...
- Tarde de écloga e mel silvestre reluzindo...
- Minhas vinhas de vinhos de oiro não bebidos...


Desfolham-se ilusões e vão-se sem apegos...
Murchou a flor dos meus desejos com que pude
a vida transformar em ócios e sossegos...


Que lucrei, eu, Senhor! com horas execráveis
dum sonho que perdeu meu corpo de virtude?
- o pródigo que fui dos erros inefáveis!

Luís de Montalvor 

(Luís de Montalvor nasceu no dia 31 de Janeiro de 1891. Morreu em 1947.)

A hora das gaivotas 15

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Estribilhos palermas que ganharam a Eurovisão 2

La lalala lalala lalala
La lalala lalala la
La lalala lalala lalala
La lalala lalala

(La la la, canção de Espanha, 1968) 

Mobiliário urbano (propriamente dito) 52

Foto Hernâni Von Doellinger

Esperando sentado, amém

Deus tarda, mas não falha. Há quem diga...

Alô, mãe, estou a andar sem mãos!...

Foto Hernâni Von Doellinger

Castelao 5

Tiña eu once anos cando meu pai, que estaba na Arxentina, nos chamou cabo de si; e alá fomos embarcados, a miña nai e mais eu, nun paquete alemán. E axiña de arribar a Bos Aires pillamos un tren que corría moito e logo outro tren que corría pouco e dispois un coche de cabalos que nos levou a tombos polo deserto da Pampa. Naquela soedade plantara meu pai unha casa para facerse rico, cavilando sempre nos eidos nativos; i era forza pecha-los ollos ó circio traballo en espera do retorno feliz.
A nosa casa era o centro comercial de dez légoas á redonda. Alí vendíamos de todo e alí mercábamos canto producía o país: lan, coiros e prumas. O mostrador do comercio estaba defendido con reixas de ferro, porque na nosa casa - portelo obligado de moitos vieiros - paraban a de cotío "gauchos" bravos, afeitos a tomarse de bebida para aldraxarnos co coitelo na man.
Eu doíame de durmir enriba do mostrador, en compaña do outro dependente. Miña nai, a probe, choraba de verse antre xentes sen relixión. E os dous, feridos de saudade, botábamos de menos a probeza limpa dos meus avós, que xa se tornara azul diante da moura fartura do presente; e no filo en que os nosos ollos se avistaban desbalsábanse en bágoas.


"Retrincos", Castelao 

(Castelao nasceu no dia 30 de Janeiro de 1886. Morreu em 1950.)

Caminho 449

Foto Hernâni Von Doellinger

Mário de Alencar 2

Para entender a linguagem coloquial da nossa gente moça, será em breve preciso ter-se à mão um vocabulário de folhas volantes que acompanhe as aceleradas inovações idiomáticas. Quanto a mim, fico em branco ouvindo expressões que andam correntes e sem dúvida traduzem idéias. Registro algumas que me estão lembrando: à beça, baita, batuta, pra burro, é um suco; e há muitas outras que tais.
Constitui esse vocabulário uma geringonça; mas, ou eu me engano, ou são as geringonças peculiares a ajuntamentos quotidianos e restritos, como as escolas e quartéis, ou à gente popular unida em identidade de profissão ou de vício. Creio também que à linguagem popular não é difícil descobrir-se uma origem na metáfora, na freqüência dos seus utensílios, ou na corrupção da ignorância. Tem ela ainda um certo pitoresco, que resulta da própria transparência ou jeito do vocábulo, ou porventura do uso limitado a um grupo.
Mas ao idioma novo a que me refiro, desde que é geral aos moços de toda procedência, não quadra a razão de ser das geringonças. Os salões que eles freqüentam assiduamente deviam ser um meio neutralizador ou anulador de hábitos e cacoetes adquiridos onde a graça se contenta de ser chulice e a comunicação de idéias se satisfaz com esgares de palavra.

"Contos e Impressões", Mário de Alencar

(Mário de Alencar nasceu no dia 30 de Janeiro de 1872. Morreu em 1925.)

Estou mesmo a ver o filme 90

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Estribilhos palermas que ganharam a Eurovisão

A-ba-ni-bi o-bo-he-bev
A-ba-ni-bi o-bo-he-bev o-bo-ta-bach
A-ba-ni-bi o-bo-he-bev
A-ba-ni-bi o-bo-he-bev o-bo-ta-bach


A-ba-ni-bi o-bo-he-bev
O-bo-e-bev o-bo-ta-bach
 

(A-ba-ni-bi, canção de Israel, 1978)

Suecódromo 10

Foto Hernâni Von Doellinger

Cuidado ao lavar!

Deus é justo, porém imenso...

Vida de cão 298

Foto Hernâni Von Doellinger

José Manuel Capêlo 2

A razão do meu sentir de hoje!

Eu quero ser louco.
Deixem-me ser louco.


Loucura não é usar boné
coçar na cabeça, roer um dedo, olhar uma grade
andar num só pé.
Loucura não é olharem-me nos olhos
fumar dum só lado
entre flores de cemitério
uma perna que passa, uma saudade de fado.


Eu quero ser louco.
Deixem-me ser louco.


A loucura é uma casa em que me abrigo
uma luz que me ilumina, uma mão que me segue
e que riu porque a sigo.
Loucura é fazer versos
é mostrar-me, é dizer quem sou
- um dedo, um olhar, um boné -
dos lugares que sinto... dispersos.


Eu quero ser louco.
Deixem-me ser louco


ao menos
Hoje!

"Odes Submersas", José Manuel Capêlo

(José Manuel Capêlo nasceu no dia 29 de Janeiro de 1946. Morreu em 2010.)

Também faço isto muito bem 18

Foto Hernâni Von Doellinger

António Alçada Baptista 2

Estas minhas palavras tiraram à Matilde uma espécie de vergonha que eu sentia no corpo dela um pouco tenso, com pouco à vontade para se entregar porque o peito já não estava como era, a cara já tinha rugas e a perna mostrava já uma pequena variz. Ela disse:
- Tu és único. Esperava tudo menos dizeres-me que o meu corpo merecia mais ternura do que quando me conheceste!
- Exactamente isso. Quando é que nós estivemos nus com este à vontade, com a sensação subcutânea de termos, não digo um inimigo mas um adversário, um intruso, um outro que não se identificava inteiramente connosco? As relações de sexo podem ser vividas enquanto somos novos, mas os encontros de amor exigem esta maturidade, quase a ausência do desejo. Gosto de estar aqui contigo, fazer festas no teu corpo já cheio de tempo, apetece-me beijar-te porque estou a beijar a tua história pessoal, aquilo que viveste, as tuas alegrias e as tuas dores. É nestas coisas que sinto que envelhecer é uma arte e que o amor só se vive plenamente quando o desejo já não comanda o nosso encontro mas sim aquilo que somos e a qualidade da nossa relação. Quando casei tu eras nova, mas nunca consegui estar contigo como estou agora.

"O Tecido do Outono", António Alçada Baptista

(António Alçada Baptista nasceu no dia 29 de Janeiro de 1927. Morreu em 2008.)

Mobiliário urbano (propriamente dito) 51

Foto Hernâni Von Doellinger

Antônio Geraldo Ramos Jubé 2

Coração, por que te dei
este anseio, que não cansa?
Pois dói tanto - ai, só eu sei! -
um amor sem esperança...

Antônio Geraldo Ramos Jubé

(Antônio Geraldo Ramos Jubé nasceu no dia 29 de Janeiro de 1927. Morreu em 2010.)

Só destes, tenho sete 18

Foto Hernâni Von Doellinger

Rafael Dieste 3

O neno suicida

Cando o taberneiro rematou de ler aquela nova inquedante - un neno suicidárase pegándose un tiro na sen dereita - falou o vagamundo descoñecido que acababa de xantar moi pobremente nun curruncho da tasca mariñeira, e dixo:
- Eu sei a historia dese neno.
Pronunciou a palabra neno dun xeito moi particular. Así foi que, os catro bebedores de augardente, os cinco de albariño e o taberneiro calaron e escoitaron con xesto inquiridor e atento.
- Eu sei a historia dese neno - repetiu o vagamundo -. E, tras dunha solerte e ben medida pausa, encomenzou:
- Alá polo mil oitocentos trinta, unha beata que despois morreu de medo viu saír do camposanto florido e recendente da súa aldea a un vello moi vello en coiro. Aquel vello era un recén nacido. Antes de saír do ventre da terra nai escollera el mesmo ese xeito de nacencia. ¡Canto mellor ir de vello para mozo que de mozo para vello!, pensou sendo espírito puro. A Noso Señor chocoulle a idea. ¿Por que non face-la proba? Así foi que, co seu consentimento, formouse no seo da terra un esqueleto. E despois, con carne de verme, fíxose a carne do home. E na carne do home aformigou a caloriña do sangue. E como todo estaba listo, a terra-nai pariu. Pariu un vello en coiro.
[...]


"Dos Arquivos do Trasno", Rafael Dieste

(Rafael Dieste nasceu no dia 29 de Janeiro de 1899. Morreu em 1981.)

Caminho 448

Foto Hernâni Von Doellinger

Xosé Fernández Ferreiro 3

Náiade do Sil

Namoreime dunha Náiade
das verdes ondas do Sil.

En branca dorna de escumas
polo río naveguei.

A dorna collia auga,
comigo ó fondo se foi.

Meus amores naufragaron,
miña Náiade morreu...

Teño un amor enterrado
nas verdes augas do Sil.

Xosé Fernández Ferreiro 

(Xosé Fernández Ferreiro nasceu no dia 29 de Janeiro de 1931. Morreu em 2015.)

Offshore, se fashavore 113

Foto Hernâni Von Doellinger

Barão de Itararé 3

A forca é o mais desagradável dos instrumentos de corda.
 

Barão de Itararé

(O Barão de Itararé nasceu no dia 29 de Janeiro de 1895. Morreu em 1971.)

Olha o avião! 11

Foto Hernâni Von Doellinger

Há fontes e fontes

Fonte baptismal, fonte de vida, fonte luminosa, fonte de alimentação, fonte de ignição, fonte da juventude, fonte de inspiração, fonte de transpiração, Fontes de Onor, Fonte Arcada, Fonte da Telha, Fonte das Sete Bicas, Fonte do Bastardo, Fonte do Santo, Fonte da Cana, José Fonte, Fontes Pereira de Melo, Fontes Rocha, Fontes de Alencar, Adios rios adios fontes.

domingo, 28 de janeiro de 2018

O paraíso da gaivota-faquir

Foto Hernâni Von Doellinger

Poesias completas e praticamente reunidas (vol. IV)

Um grande igualmente e uma boa continuação
n
na
nata
natal
natação
natátil natado
natalino nateiro
natalense natalício
natalidade nateirado
natário natatório natadeiro
batatascozidascombacalhau
na
na


jingle bells, jingle bells
jingle bells, jingle bells
obladi, oblada
babalhau, azeite e alho
tá-tará-tá-tá-tá-tá

adeste fideles
na-na-na, nana-nana
vinho na pipa, couves na horta
quem está salvo, salvo está

silent night, holy nigh
grândola vila morena
rapa-tira-deixa-põe
ó que pena, ó que pena

we wish you a merry christmas
morte que mataste lira
porompom pero, porompom
Uma da manhã, ei, bem bom

all i want for christmas is you
giroflé, giroflá, giroflé, flé, flá
o galo badalo, a galinha balbina
o pinto jacinto e o peru gluglu

last christmas i gave you my heart
djobi djobi djobi djoba
eles não sabem que o sonho
foi bonita a festa pá

fairytale of new york
daili-daili-daili-dou
o meu menino é d'oiro
mama mia let me go

i wish it could be christmas everyday
pa-rum-pa-pum-pum
entram galifões de crista
de um fado que eu inventei

driving home for christmas
malageña salerosa
atirei o pau ao gato
deja de ser caprichosa

stop the cavalry 
nas palhas deitado
mamã dá licença
estou muito cansado

i'm dreaming of a white christmas
ó que lindo chapéu preto
lá em cima está o tiroliroliro
cuidado casimiro, cuidado casimiro

let it snow, let it snow
na ribeira do sol posto
ninguém poderá mudar o mundo
quem faz um filho fá-lo por gosto

vão aos saltos pela casa
ring-a-ling, ring-a-ling
um pouco mais de sol - eu era brasa
só há estas, são pra ming

Aguenta aí o cavalo

Foto Hernâni Von Doellinger

Berecil Garay 2

Beleza
 
A maçã mais bela
entre todas é escolhida
para ser comida.
 


Berecil Garay 
 
(Berecil Garay nasceu no dia 28 de Janeiro de 1928. Morreu em 1996.)

I want to ride my bicycle 42

Foto Hernâni Von Doellinger

Vergílio Ferreira 2

Um dia, à meia-noite, ele viu-a. Era a estrela mais gira do céu, muito viva, e a essa hora passava mesmo por cima da torre. Como é que a não tinham roubado? Ele próprio, Pedro, que era um miúdo, se a quisesse empalmar, era só deitar-lhe a mão. Na realidade, não sabia bem para quê. Era bonita, no céu preto, gostava de a ter. Talvez depois a pusesse no quarto, talvez a trouxesse ao peito. E daí, se calhar, talvez a viesse a dar à mãe para enfeitar o cabelo... Devia-lhe ficar bem, no cabelo.

"A Estrela", Vergílio Ferreira

(Vergílio Ferreira nasceu no dia 28 de Janeiro de 1916. Morreu em 1996.)

Treinador de bancada

Foto Hernâni Von Doellinger

António Feliciano de Castilho 5

Os sonhos

Recordas-te, ingrata,
Quando eu te dizia
Que em sonhos Armia
Cedia aos meus ais?

Sorrias, coravas,
Fugias, juravas
Que nunca os meus sonhos
Seriam leais.

Armia, esta noite,
Segundo o costume,
Tomei co meu nume,
Tomei a sonhar.

Qual és, eras rosa,
Gentil, espinhosa,
Sem par nos rigores,
Nas graças sem par.

Dou graças ao fado,
Já sonho esquivança;
Já luz esperança
No meu coração.

Tu juras que em sonhos
Só há falsidades,
E nunca deidades
Juraram em vão.

"Escavações Poéticas", António Feliciano de Castilho

(António Feliciano de Castilho nasceu no dia 28 de Janeiro de 1800. Morreu em 1875.)

sábado, 27 de janeiro de 2018

Vida de cão 297

Foto Hernâni Von Doellinger

Fonte limpa

Dois banhos por semana: à terça e à sexta.

Offshore, se fashavore 112

Foto Hernâni Von Doellinger

Eduardo Teófilo

E as mulheres bailam de roda dos homens, atiram-se-lhes para a frente, chegam-se-lhes, afastam-se-lhes, requebrando os rins, remexendo o ventre, numa fúria cada vez maior, numa dança de amor, talvez. Algumas trazem os filhos de mama, enrolados nos panos, às costas. As crianças dormem e as mães bailam. E elas parece começarem já a apreciar a dança por instinto, por sugestão, embaladas no seu sono pelos requebros e meneios das costas balançando.

"Quando o Dia Chegar", Eduardo Teófilo

 (Eduardo Teófilo nasceu em 1923. Morreu em 1980.)

A cidade das traseiras 52

Foto Hernâni Von Doellinger

Iguais perante Deus

Somos todos iguais aos olhos de Deus. Cada qual no seu devido lugar.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Dressage à trois

Foto Hernâni Von Doellinger

Poesias completas e praticamente reunidas (vol. III)

Banda
Banda
do casaco,
banda gástrica, banda magnética,
banda desenhada, banda do cidadão, banda cromática,
banda larga, onda curta, Banda Miranda, The Band,
banda sonora, Banda Musical de Trajeitos de Baixo

cara à banda, a Outra Banda, pôr de banda,
vai àquela banda

embandeirar em arco, abandonar o barco

bandeira, bandarra,
bandarilha, bandeja,
bandolete, bandó, bandado,
bandeirada, bandeirante, bandeirinha,
bandeirola

bando, bandolim,
bandido, bandoleiro,
bandalheira, debandada

bandulho

a banda abunda,
abana a bunda. 


Sem condições para que a poesia aconteça
Olho pela janela e está sol.
Choveu que Deus a deu
durante
quase toda a manhã,
mas agora não. Está sol.

Olho pela janela e vejo
telhados vermelhos e cinzentos,
cinzentos suspeito que de lusalite,
e quase me dá uma himoptise.
Tusso e desisto.

Vejo cinco telhados, cinco
o resto são paredes, paredes
de prédios de doze andares, doze
cheios de janelas e marquises, marquises.

Paredes prédios a precisarem pelo menos de pintura.
Pintura.

Nos telhados, nem um gato
nem uma gaivota, um melro sequer.
Estão cá sempre, menos o melro, e hoje
agora
não sei o que lhes deu.

Estou sem gatos,
sem pássaros,
sem chuva.

Assim não há condições
para fazer poesia,
condições
para que a poesia aconteça.

Acho que vou
escrever um livro.

(P.S. - A puta da gaivota chegou agoríssima, são as 15h12, mas não me vai escangalhar o brilharete. Fica tudo como estava, em respeito pela verdade da literatura em particular e da arte em geral.)
(P.S. 2 - E agora apareceu o caralho do gato, são as 15h33. É o que eu digo: a poesia é o momento. E entretanto tornou a chuva...)

Vida de cão 296

Foto Hernâni Von Doellinger

Afonso Lopes Vieira 4

Dança do vento

O vento é bom bailador,
Baila, baila e assobia,
Baila, baila e rodopia
E tudo baila em redor.

E diz às flores, bailando:
- Bailai comigo, bailai!
E elas, curvadas, arfando,
Começam, débeis, bailando
E suas folhas, tombando,
Uma se esfolha, outra cai.
E o vento as deixa, abalando,
- E lá vai!...

O vento é bom bailador,
Baila, baila e assobia,
Baila, baila e rodopia,
E tudo baila em redor. 

E diz às altas ramadas:
Bailai comigo, bailai!
E elas sentem-se agarradas,
Bailam no ar desgrenhadas,
Bailam com ele assustadas,
Já cansadas, suspirando;
E o vento as deixa, abalando,
E lá vai!...

O vento é bom bailador,
Baila, baila e assobia,
Baila, baila e rodopia,
E tudo baila em redor!

E diz às folhas caídas:
Bailai comigo, bailai!
No quieto chão remexidas,
As folhas, por ele erguidas,
Pobres velhas ressequidas
E pendidas como um ai,
Bailam, doidas e chorando,
E o vento as deixa abalando
- E lá vai!

O vento é bom bailador,
Baila, baila e assobia,
Baila, baila e rodopia,
E tudo baila em redor!

E diz às ondas que rolam:
- Bailai comigo, bailai!
E as ondas no ar se empolam,
Em seus braços nus o enrolam,
E batalham,
E os seus cabelos se espalham
Nas mãos do vento, flutuando,
E o vento as deixa, abalando,
E lá vai!...

O vento é bom bailador,
Baila, baila e assobia,
Baila, baila e rodopia,
E tudo baila em redor!

Afonso Lopes Vieira

(Afonso Lopes Vieira nasceu no dia 26 de Janeiro de 1878. Morreu em 1946.)

Cogumelos e sentieiros

Foto Hernâni Von Doellinger

Antônio Callado 2

Patas macias sobre folhas mortas. Ao atravessar num salto a janela aberta o tigre sabia muito bem que o lenhador tinha saído. O bebê de dois anos estava sentado no chão, brincando. Sozinho, sozinho. O tigre se aproximou cauteloso e quando a criança viu aquele cachorrão rajado abriu com espanto dois olhos azuis, dois lábios sorridentes, dois bracinhos. O tigre começou pelos braços. Depois devorou o resto da criança e tratou de voltar à floresta.
Suponha, agora, que esse tigre cresceu, deixou de comer criança e relembre um dia como havia devorado o filho do lenhador. Um sorriso estranho paira sobre sua cara, sorriso no qual seu orgulho tigrino só permite que se manifeste um tiquinho de remorso. O resto do sorriso é a pura lembrança da carne tenra da criança, é desprezo pelo lenhador estúpido que deixou a janela aberta - uma completa orgia de satisfação consigo mesmo.
Foi com um sorriso assim (e há sorrisos dificílimos de descrever) que o amigo do homem desaparecido se aproximou da janela do seu apartamento tendo na mão o livro que o desaparecido dedicara a ele: "Para você, meu grande amigo". O amigo olhou lá fora o mar que ia além da praia de Copacabana e que flambava ao sol do meio-dia como uma poncheira acesa. Era quase um milagre a capacidade que tinha o Rio de dar às pessoas uma sensação de bem-estar, de saúde. O desaparecido também amava o Rio.

"O Homem Cordial e Outras Histórias", Antônio Callado

(Antônio Callado nasceu no dia 26 de Janeiro de 1917. Morreu em 1997.)

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Também está bem... 3

Primeiro:

Foto Hernâni Von Doellinger


Depois, assunto resolvido:

Foto Hernâni Von Doellinger


Agora, ainda melhor:

Foto Hernâni Von Doellinger

Os artigos expostos...

A diferença entre mulher de vida e mulher da vida está no artigo.

E que tal um ménage à trois?...

Foto Hernâni Von Doellinger

O cão é, desde tempos imemoriais, uma das mais consistentes artimanhas do homem para a queca. Está cientificamente provado, todos os dias vejo disso.
Quem tem tesão compra um cão, diz o povo e com razão. Porque o animal - aflito, ziguezagueante, ganinte, de orelhas, rabo e tudo arrebitado -, parecendo embora que sai à rua em busca desesperada por parceira ou parceiro de quatro patas onde possa alivar o stresse, vem mas é tratar do cio do dono. Ou da dona. Por procuração.
Largado à frente, sem trela, "Vai, Corisco, vai, arranja-me uma gaja! Um gaja boa!", o cão é um batedor sexual para prazeres alheios. Evidentemente tem de se entender com o outro animal, mas isso é truque, pretexto para o dono chegar à dona, como todos sabemos, e depois eles, dona e dono, ou dono e dono, ou dona e dona, depois de conversarem resumida ou detalhadamente sobre raças e rações, que se entendam e se acamem. E muitas vezes entendem-se e acamam-se. Olhemos à nossa volta, sem falsos pudores: quantos namoros e casamentos, que nós tenhamos conhecimento ou desconfiemos, não foram intermediados por cães? Quantos engates e quantas pinocadas avulsas?!...
Passear o cão, é assim que se diz, mas querendo dizer outra coisa. Há até quem dê treino específico ao cão, para loiras ou morenas, gordas ou magras, inteligentes ou burras, e assim sucessivamente e vice-versa. É verdade, ele há cães especialistas. Cães de um certo tipo de caça.
O cão é, portanto, um alcoviteiro. Mas já foi mais, no tempo em que não havia Facebook. No tempo em que se mandava uma cadela ao espaço e a cadela chamava-se Laika. Hoje chamar-se-ia Like. É. As chamadas redes sociais na internet são agora, particularmente para casados, o principal móbil do engate, o menu do sexo à mão de semear, e esta nova realidade veio prejudicar sobremaneira os cães, cada vez mais substituídos, abandonados e abatidos, por aparentemente já não serem precisos.
Correndo o risco de fazer um título à Correio da Manhã, eu diria que o Facebook está a matar o cão. Aos poucos. E, todavia, acho que compreendo esta paulatina porém irreversível substituição do "animal doméstico" pela "aplicação social", porque a verdade é só uma: comprar ou adoptar um cão dá provavelmente mais trabalho e despesa do que criar um perfil no Facebook, sendo que o resultado final é o mesmo. Nestes tempos conturbados, o meu mais descarado elogio vai, pois, para as almas caridosas, afogueados adúlteros, que acumulam cão e Facebook, pelo sim e pelo não, e só temos de lhes agradecer, em nome dos animais.
Salvemos o cão! Porque ainda há algumas diferenças a considerar entre o cão e o Facebook - a não ser que Facebook seja o nome do cão. Para além de que o Facebook, o da internet, tem aquele perigo (há casos!) de a mulher andar a pôr os cornos ao marido e o marido andar a pôr os cornos à mulher - cada qual com o seu perfil secreto, mais ou menos falso e sobretudo "criativo" -, até ao dia em que se engatam como desconhecidos e depois se encontram para o que já sabemos. É então que marido e mulher reciprocamente infidelíssimos descobrem que realmente... foram feitos um para o outro.

(Texto escrito e publicado originalmente no dia 27 de Janeiro de 2016, então sob o título "O cão, essa espécie de Facebook")

Porto vírgula 18

Foto Hernâni Von Doellinger

Judith Teixeira 2

Sherazade

Assim... de mansinho...
une a tua boca à minha boca.
Amor, assim... devagarinho...
entorna mais sombra nos teus olhos!...
E sonha, e sofre ainda
a luxúria do meu beijo...
Oh como a volúpia é linda,
Crispando o teu desejo!

Asas longuíssimas, esguias,
tumultuando indominadas no
vendaval das nossas sensações!

Escuta amor:
este turbado rumor
cálido e dolorido
é o eco tantas vezes repetido
das nossas férvidas
e magoadas
crispações!...

Lá fora, o dia morre tristemente...
Não vejas, meu Bem,
oh! não queiras ver
o céu nostálgico,
opacescente
e agonizante!...
Fecha ainda mais
na ternura dos teus braços
a graça perturbada
do meu corpo feminino...
E sofre... queima ainda
a linda Sultana do teu desejo,
na brasa do teu beijo
agónico...
soluçante...
e que não finda!

"Poesia e Prosa", Judith Teixeira

(Judith Teixeira nasceu no dia 25 de Janeiro de 1880. Morreu em 1959.)

Caminho 447

Foto Hernâni Von Doellinger

Eusebio Lorenzo Baleirón 3

A quimera de Sísifo

Ao mar os horizontes e ás miñas sens os días
Así como a palabra perdida torna ao centro
volve o ser e devala e nunca o ritmo
dun empardecer coas cores do confín
vén salvarme. ¿Entenderá o destino
as tentativas, a rebelión visíbel
do que sen fin desperto pensa talvez na morte?
Pode que a pergunta nos deixe inermes, cegos,
diante do grande enigma; ¿mais
que - noutro tempo - deus ignoto
deu tal castigo a un home?
Perségueme inda a sombra
cando pola encosta inerte
sinto a pena en min.
Que ningún ser ou cousa amose compaixón;
tal precio paga quen desafía o oculto
e ousa demandar razón e causa,
tan amarga e terríbel a súa débeda é.

"Gramática do Silencio. Obra Poética", Eusébio Lorenzo Baleirón

(Eusebio Lorenzo Baleirón nasceu no dia 25 de Janeiro de 1962. Morreu em 1986.)

Offshore, se fashavore 111

Foto Hernâni Von Doellinger

Infinito mas com limites

Deus é infinitamente bom, mas convém não abusar...

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Percebeiro em trânsito 2

Foto Hernâni Von Doellinger

Lições de História 21: Daniel

Daniel foi mediano profeta e consta da Bíblia no, exactamente, Livro de Daniel. Trabalhou na Babilónia como vidente e porventura cartomante, interpretando sonhos e visões, e tinha três amigos esquisitamente chamados Sadraque, Mesaque e Abednego. Foi também domador de leões, com um anjo como partenaire, dando início a essa lamentável tradição circense.
A fama chegou-lhe apenas em 1973, quando entrou numa canção do Elton John.

Vida de cão 295

Foto Hernâni Von Doellinger

António Manuel Couto Viana 2

Madrigal da terceira idade para afastar a solidão

É um amor discreto,
Ignorado, até.
Só um gesto de afecto,
Um sorriso secreto,
Desfeito, se alguém vê.

É um amor tranquilo,
De alguém que quer alguém
Prà solidão do asilo.
- Coração, ao senti-lo,
Nem aceleras, nem…

É um amor-amizade.
Um amor-simpatia.
Mas, mesmo assim, ele há-de
Deixar dor e saudade
E gerar poesia.


"Disse e Repito", António Manuel Couto Viana

(António Manuel Couto Viana nasceu no dia 24 de Janeiro de 1923. Morreu em 2010.)

Contador de ondas

Foto Hernâni Von Doellinger

Augusto Meyer 4

Realejo

... e esse realejo
como range, alegre,
mói minha alma leve
como a luz do céu...
Dançam figurinhas
sobre a caixa, lindas
como um brinquedinho... 

... gira, gira
como os dançarinos,
a minha alma leve
como os brotos novos,
como a igreja nova...
Bimbalhar de sinos,
bimbalhar sonoro,
moças tagarelas,
(quanta namorada!)
campos de cevada... 

... realejo alegre,
toda a primavera,
delirantemente,
reza, canta, reza,
canta a missa verde...

Augusto Meyer

(Augusto Meyer nasceu no dia 24 de Janeiro de 1902. Morreu em 1970.)

O Porto aponta ao céu 27

Foto Hernâni Von Doellinger

Visão divina

Deus vê tudo. Mas fecha os olhos a muito...

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Também está bem... 2

Antes:

Foto Hernâni Von Doellinger


Agora, assunto resolvido:

Foto Hernâni Von Doellinger

Aguçando

A necessidade aguça o engenho. A afiadeira aguça o lápis.

Offshore, se fashavore 110

Foto Hernâni Von Doellinger

João Ubaldo Ribeiro 5

Amleto enterneceu-se, tremeu-lhe o queixo, andou para a mãe, tocou-lhe as mãos, quase a abraçou. Ah, senhora minha mãezinha, se pudesse abraçar-te e envolver-te em meus braços, era o que fazia agora! Ah, mãezinha, bem sabes quanto me dói também esta situação, pensas que não tenho sentimentos, que não choro à noite em pensar na minha mãezinha lá sozinha e eu sem poder nem sair à rua com ela! Se não fossem essas malditas negras tagarelas que aqui podem entrar a qualquer momento, ou algum dos meninos, que hoje é domingo e de nada se ocupam, se não fosse isso, cobrir-te-ia agora de beijos e afagos, bem sabes que o faria, adorada mãezinha! Mas não sabes, diz-me, diz-me, por caridade diz-me, não sabes que isto, esta horrível situação, é para o nosso próprio bem? Sabes nada, sempre parece que não sabes! Mas entendes, não entendes, mãezinha adorada? É para o nosso próprio bem, não sabes?
Sim, ela sabia e sabia também dos seus dele sofrimentos, pois lhe conhecia de sobra os bons sentimentos e não lhe ocorria um sequer defeito. Mas não poderia, talvez, assistir ao batizado, mesmo discretamente, à distância, sem se meter nas conversas, sem sair de seu lugar, apresentada talvez como uma ama-de-leite da infância dele, uma criada mais chegada, uma ama-seca ou governanta?

"Viva o Povo Brasileiro", João Ubaldo Ribeiro

(João Ubaldo Ribeiro nasceu no dia 23 de Janeiro 1941. Morreu em 2014.)

Estou mesmo a ver o filme 89

Foto Hernâni Von Doellinger

Viriato Correia 5

Aquela notícia faz prolongar a reunião. O Imperador parece não acreditar na queda do trono. Em vez de Silveira Martins, resolve confiar a chefia do gabinete ao Conselheiro Saraiva. São quase duas da madrugada. Saraiva, chamado com urgência, vem imediatamente. Aceita o gabinete, mas em primeiro lugar precisa saber as intenções de Deodoro. Vai escrever-lhe uma carta e, pela resposta, saberá se é verdade ou não que ele proclamou a República.
Senta-se e escreve ao chefe revolucionário, comunicando-lhe que estava encarregado de organizar o novo ministério, mas que o não queria fazer sem com ele entender-se. E conclui convidando-o a vir ao paço no dia seguinte.
O major Trompowsky, a pedido do sogro, vai levar a carta a Deodoro, no campo da Aclamação. São três da manhã. À porta do proclamador há guardas. O major consegue ser levado ao quarto do novo chefe de Estado. Deodoro lê a carta. Nada tem que responder. Já havia proclamado a República!
- Proclamei-a sem sangue, sem desacato à família imperial, para evitar que mais tarde ela fosse feita de modo contrário.
E o velho Joaquim Gonçalves concluiu:
- Foi assim que se fez a República. Eu vi tudo. Eu sabia de tudo.

"Contos da História do Brasil", Viriato Correia

(Viriato Correia nasceu no dia 23 de Janeiro de 1884. Morreu em 1967.)