terça-feira, 8 de agosto de 2017

Parabéns, Senhor Hernâni

Foto Hernâni Von Doellinger

O meu amigo Senhor Hernâni fará hoje 81 anos, se não me engano, e eu tenho-lhe saudades. Eu e ele, o Homem da Música, éramos accionistas maioritários de um banco no Parque da Cidade do Porto, alameda de entrada-saída da Avenida da Boavista, quase em frente às bombas da Galp, quem vai para a igreja de Nevogilde, mas a vida desviou-me à falsa fé dos nossos encontros ecuménicos de fim de tarde. Ele adventista militante e eu católico acomodado, falávamos de artes, de paz, das crianças e dos velhos, de afectos, da memória, do mundo, de tudo e de nada, de Deus, da alegria de viver com Deus. O Senhor Hernâni tentava missionar-me, converter-me, contava-me da sua Igreja, cantava-me hinos de louvor à vida e ao "Senhor Jesus". Enfeitava-os com um trejeitinho de fado, às vezes de folk - palavra de honra. Eu tinha para a troca o "Tantum Ergo" e o "Queremos Deus", mas guardava-os para mim, e creio que era sensato, o meu amigo não merecia semelhante castigo...

O Homem da Música fez o favor de me deixar começar a ser seu amigo parece-me que há coisa de cinco ou seis anos. Calhava perdermo-nos de vista por umas temporadas, mas felizmente lá tornávamos ao reencontro no banco do costume - um banco bom. Uma vez o Senhor Hernâni apareceu-me com instrumental novo e a superbicicleta cada vez mais artilhada: até já tinha relógio-despertador. Pusemos a conversa em dia. Contou-me que o jeito para as engenhocas lhe vinha do ofício antigo, mais de trinta anos como afinador de máquinas numa grande fábrica em Rio Tinto. E que o amor pela música era de sempre, desde que se lembra de começar a contar os 77 que então levava.
Falou-me da mulher, que tinha "menos dez anos" do que ele e doenças que chegasssem para os dois. Dos filhos, três, um dos quais "trabalha numa agência e sabe as línguas todas". Da ventura de alma que lhe é "louvar e amar o Senhor". Do seu Bairro da Fonte da Moura. Da lambreta cor-de-laranja em avançado processo de tuning caseiro. Das viagens em bicicleta até Arcozelo, em Gaia, ou até São Mamede de Infesta, para tocar. E pelo caminho já cantava e tocava - o que houvesse a resolver com o trânsito era "pelos retrovisores"...
Há meses que não o via. Contou-me que passou a ir alegrar as tardes da rapaziada da idade dele que frequentava o centro de dia da então Junta de Aldoar. Levava-lhes música, porque lhe apetecia e fazia gosto. Ninguém lhe encomendara o serviço, não. "Eles vêm cá para fora e eu toco", diz-me, quase envergonhado da felicidade que lhe salta dos olhos. "Quer ver? Quer ver?", e rapa da harmónica e do pandeiro e oferece-me uma modinha americana que, na verdade, é um hino religioso. Agradeço-lhe. Digo "Muito bem!", para esconder a comoção que também me embaraça. Digo-lhe que tenho sentido a falta dele no banco do Parque e que andava preocupado. Não estou a mentir. O Homem da Música percebe, ri, rouba duas ou três notas ao teclado que tem em cima dos joelhos, para que eu saiba que a coisa funciona. E funciona.
Ele quer que eu fique mais um bocado. Fico. Gosto do Homem da Música. Ainda por cima tem um nome próprio que, não desfazendo, lhe calha muito bem - é Hernâni como eu. Senhor Hernâni, que eu não sou...

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