segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Eu, as Grilas, as Turicas e um par de mamas

Eu também fui preso antes do 25 de Abril. Sim, no meu tempo de estudante, em pleno turbilhão da crise académica de 1969, andava na quinta classe e ia para a Escola da Feira Velha quando fui detido pelo polícia, preso pelo cachaço. (A quinta classe que fiz com o professor Fernando - "Conhé" para os alunos -, e não há engano, houve realmente um tempo em que a quinta e a sexta classes eram o liceu dos pobres). Mas o meu o crime, é isso que querem saber, não é? Pois bem: achei um bocado de giz no chão e escrevi "Senhoras Donas Grilas" na parede da casa das Grilas propriamente ditas. Há horas do diabo e o cívico estava lá, pontual e flagrante, mesmo atrás das minhas costas. Apanhei um susto que ainda hoje tremo, e digo isto sem peneiras: ia-me borrando todo.
A história precisa de ser melhor contada, não precisa? Vamos lá então ver se sei, e por partes:

Primeiro, para que nos situemos, é essencial não confundir as Grilas com as Turicas, erro crasso e muito comum entre os especialistas locais. As Grilas eram mesmo ao lado do prédio do Café Chinês, que então se construía. Irmãs, velhas no meu critério de criança, solteironas, desgrenhadas, professoras e misteriosas. Raramente vistas na rua, espreitavam apenas à porta, defendida por um portão baixinho em ferro forjado, e quando meteram o telefone em casa ligaram ao meu avô a perguntar se o telefone dos Bombeiros "também tocava em português" como o delas. Eu morava ali à beira, ao dobrar da esquina, no Santo, e as senhoras até gostavam de mim. Mesmo depois da tratantada que lhes perpetrei e que graças a Deus nunca lhes chegou aos ouvidos. Sabiam que eu era filho da "viúva da Bomba" e isso valia muito em Fafe. Quando eu passava, as Grilas diziam-me sempre qualquer coisa simpática, só com a guedelha grisalha e o nariz de fora, e uma vez deram-me um santinho. Obviamente não mereciam a traição que lhes cometi...
Isto as Grilas. Agora as Turicas, na mesma Rua Monsenhor Vieira de Castro e do mesmo lado, direito para quem desce para o Picotalho ou para a Recta, mas depois do cruzamento dos tascos do Paredes e do Zé Manco, nem 50 metros de distância entre umas e outras, e daí a lamentável e inexplicável confusão numa terra tão prenhe de historiadores. As Turicas eram também irmãs. Pequeninas e idosas, resmungonas e prendadas para os mais delicados lavores, faziam renda de bilros sentadas num banquinho junto às enormes portadas que davam para a rua. Tinham uma loja mais antiga do que elas e que cheirava a um mofo muito bom. Vendiam botões e tafetás, fitas de nastro, fechos, linhas, lãs, chitas, agulhas e flanelas. Vendiam também vinho ao garrafão nas traseiras do estabelecimento. As boas senhoras tinham uma "criadita" que abria a porta a quem ia comprar vinho. E a miúda tinha umas mamas. A minha mãe mandou-me ao vinho e eu pedi à rapariga se me deixava apalpar-lhe as mamas. Ela não deixou e eu apalpei. As mamas eram de papel e foi um desgosto muito grande.

Que se segue: o prédio do Café Chinês estava a ser construído e as Grilas, que já lá moravam resvés, queixavam-se das obras e dos operários. Queixavam-se do barulho e da insegurança, de tudo e de nada, barafustavam que a casa ia abaixo, era berraria o dia inteiro, guinchos de um lado e palavrões do outro, que até foi preciso chamar a Polícia. A Polícia veio e ficou. Dias e dias. Um agente sempre a rondar e a deitar os olhos ao conflito durante as horas de expediente, não fosse a coisa passar a vias de facto.
Ora, foi exactamente o desprezo por este pequeno pormenor que me tramou. Quando o toco de giz me apareceu aos pés a tentar-me e eu não resisti a apanhá-lo e a sarrabiscar "Senhoras Donas Grilas" na parede das ditas, palavras não eram escritas e já estava a ser levantado por um potente garibalde (cá está) que me agarrou em tenaz pelo cachaço e perguntou - O que é que o senhor está a fazer?
Olhei para trás e o garibalde era um polícia. O senhor era eu mais os meus onze anos, o que me fez desconfiar que estava metido em caso sério. Com o giz na mão e a última perninha do "s" final ainda a fumegar, respondi - Nada...
Ainda hoje acho que respondi com grande categoria.
E o polícia - Onde é que o senhor mora? E eu, que não queria a minha mãe metida na ocorrência, até porque era melhor para mim - Moro longe. E ele - Então, vamos para a esquadra.
(Para a esquadra? Mais polícias? Isso é que não me dá jeito, pensei, rápido como um fósforo, derivado ao que se ouvia dizer. Porque a Polícia daquele tempo.... bem, a Polícia daquele tempo vestia uma farda de terilene cinzento, que era a cor da Autoridade e do País. Os carteiros também vestiam de cinzento, mas em cotim. A outra diferença é que os carteiros eram nossos amigos.)
E eu - Enganei-me, senhor polícia, desculpe, moro já aqui no Santo...
O polícia deixou-me finalmente aterrar, empurrou-me para casa, ainda com a tenaz no meu cachaço, o João do Zé Manco viu, veio a correr acudir por mim e foi à frente avisar a minha mãe de que eu não tinha feito mal nenhum. Fiquei a dever uma ao João. Dessa vez a minha mãe não me bateu. E ainda agora me diz que, para além da cunha do João, levou em devida conta o facto de eu ter escrito "Senhoras Donas Grilas" e não "Grilas" simplesmente. "Senhoras", evidentemente. Para a minha mãe, respeito e educação acima de tudo.
Fui condenado a limpar a parede com um pano molhado, cumpri pena e segui para a escola, de coração a mil e tremente como varas verdes. As varas verdes eram também uma especialidade da minha mãe. Livrei-me de boa...

Lugares-comuns 432

                                                                                                                Foto Hernâni Von Doellinger

Carlos Drummond de Andrade 4

Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para o Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.


"Alguma Poesia", Carlos Drummond de Andrade

(Carlos Drummond de Andrade nasceu no dia 31 de Outubro de 1902. Morreu em 1987.)

Os meus cromos 3: Nuno Cardoso

Foto Hernâni Von Doellinger

Marquesa de Alorna

Sonho

Perdoa, Amor, se não quero
Aceitar novo grilhão;
Quando quebraste o primeiro,
Quebraste-me o coração.

Olha, Amor, tem dó de mim!
Repara nos teus estragos,
E desvia por piedade
Teus sedutores afagos!

Tu de dia não me assustas;
Os meus sentidos atentos
Opõem aos teus artifícios
Mil pesares, mil tormentos.

Mas, cruel, porque me assaltas
De mil sonhos rodeado?
Porque acometes no sono
Meu coração descuidado?...

Eu, quando acaso adormeço,
Adormeço de cansada,
E o crepúsculo do dia
Me acorda sobressaltada.

Arguo então a minha alma,
Repreendo a natureza
De ter cedido ao descanso
Tempo que devo à tristeza.

Que te importa um ser tão triste?...
Cobre de jasmins e rosas
Outras amantes felizes!
Deixa gemer as saudosas!


Marquesa de Alorna

(Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre, Marquesa de Alorna, nasceu no dia 31 de Outubro de 1750. Morreu em 1839.)

Caminho 261

                                                                                                                Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 30 de outubro de 2016

Ministro do Ensino Superior e assaz analfabeto

Eu não sabia que Portugal tinha um ministro do Ensino Superior. Tem, vi há bocado no noticiário da RTP. É o senhor Manuel Heitor, que eu desconhecia, e acumula a Ciência e a Tecnologia. Rima e é verdade.
O senhor Manuel Heitor é, de acordo com a informação oficial que procurei, "doutorado pelo Imperial College de Londres, na área de Engenharia Mecânica (Combustão Experimental), 1985, tendo feito um pós-doutoramento na Universidade da Califórnia em San Diego, 1986. Prosseguiu posteriormente uma carreira académica no Instituto Superior Técnico em Lisboa".
O senhor Manuel Heitor, no entanto, não deve ter feito o Exame da Quarta - e deixo o escândalo ao cuidado do departamento de informação e contra-informação do PSD, isto é: o Observador.
Porque o senhor Manuel Heitor é mais um dos que desconhecem a existência do verbo estar. Disse ele na televisão pública - que até já teve (ou esteve?) Telescola -, a propósito de umas bolsas de excelência que estão por pagar aos alunos há uns anitos: "O compromisso que eu tou a assumir"... Tou, senhor Heitor? Tá lá? Puxei três vezes atrás, só para ter a certeza. E foi mesmo isso que o ministro das universidades disse: "O compromisso que eu tou a assumir".
Portanto, Portugal tem um ministro do Ensino Superior que não sabe os verbos, que se calhar nem sabe a tabuado dos nove, a Linha da Beira Alta ou os reis da 1.ª Dinastia, e que certamente não concluiu a Escola Primária, frequentou apenas. E anda o Observador afogueado a escarafunchar ajudantes de ajudantes do Governo, rapazolas da corda e muito bem assalariados, cujo único e inofensivo defeito para a Nação é terem a mania de que são doutores da mula ruça...

Mobiliário urbano (propriamente dito) 15

                                                                                                                 Foto Hernâni Von Doellinger

Maria Amélia Neto

O medo 

Surgiu
Por detrás
Da nuvem escura
Que tapou a lua.
Escorregou
Sobre a planície,
Negro,
Envolto
Em longas chamas.
Era meu.
Pertencia-me.
Era o medo.

"O Vento e a Sombra", Maria Amélia Neto

(Maria Amélia Neto nasceu no dia 30 de Outubro de 1928) 

Lugares-(in)comuns 212

                                                                                                                               Foto Hernâni Von Doellinger

Carvalho Calero 3

Ferrol 1916 

Cinco duros pagábamos de aluguer.
Era um terceiro andar, bem folgado.
Pola parte de atrás dava para o Campinho,
e por diante para a rua de Sam Francisco.

No segundo vivia a minha tia aboa:
Tiña unha peza cheia de paxaros disecados
que só abria os dias de festa
para que os nenos disfrutásemos nela.

Ainda vivia minha mãe
e todos os meus irmaos viviam,
e em frente trabalhava o senhor Pedro o tanoeiro,
e a grande tenda de efeitos navais mantinha o seu trafego.

Na casa tinhamos pombas
e, por suposto, un grande gato mouro;
e o mue pai era novo ainda
e no mar do mundo cada dia descobria eu unha ilha.

Via o mar da minha fiestra,
e chegavam cornetas da marinha.
E baixava os degraus duas vezes ao dia para ir à escola,
e duas vezes rubia-os de volta.

As mulheres entom usavam capa e corsé,
e íamos à aldeia em coche de cavalos,
e a rua estava ateigada de pregons de sardinhas
e de ingleses que vendiam Bíblias.

Eu tinha un pacto con Deus:
que ninguén dos meus morreria.
E o pacto era observado,
e eu confiaba na perenidade do pacto.

Todo isto fica tam longe
que aduro podo ainda lembrá-lo.
Esqueceria-o dentro de pouco tempo
se non escrebese estes versos.


"Futuro Condicional", Carvalho Calero

(Carvalho Calero nasceu no dia 30 de Outubro de 1910. Morreu em 1990.)

Caminho 260

                                                                                                               Foto Hernâni Von Doellinger

Luís Guimarães Filho

Soneto romântico

Pousa os olhos nos meus... deixa voar
Os nossos sonhos que outro sonho enlaça...
Eu quero ler a imaculada graça
Dos juramentos que tu tens no olhar!

Escuta as dores do profundo mar!
Vê como sofre o vento quando passa!
E como é triste a cândida desgraça
Que existe na eloquência do luar!

E enquanto os outros vivem padecendo,
No mundo vil - no mundo atroz e horrendo -,
Nós dois, como os amantes da balada,

Vamos sofrer de novo as amarguras
E repetir as imortais loucuras
Do nosso amor, ó companheira amada!

"Ave Maria", Luís Guimarães Filho

(Luís Guimarães Filho nasceu no dia 30 de Outubro de 1878. Morreu em 1940.)

Os meus cromos 2: Jaime Magalhães

Foto Hernâni Von Doellinger

Alfredo Guisado

Ante a paisagem

Eu fujo da Paisagem. Tenho medo.
Os pinheirais são em marfim bordados.
Sou paisagem-cetim num olhar quedo,
Oiro louco sonhando cortinados.

Fujo de mim porque já sou Paisagem.
Procura-me Satã no meu chorar...
Seus passos, o ruído da folhagem.
Cimos de lírios velhos de luar.

As tuas mãos fechadas e desertas,
Janelas para o jardim, jamais abertas,
Fiam de mármore um correr de rios...

E os teus olhos cansados de saudades.
Eunucos possuindo divindades...
Hora-luar a de teus olhos frios...


"Elogio da Paisagem", Alfredo Guisado

(Alfredo Guisado nasceu no dia 30 de Outubro de 1891. Morreu em 1975.)

Lugares-comuns 431

                                                                                                                                         Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 29 de outubro de 2016

Adalgisa Nery 4

Poema natural

Abro os olhos, não vi nada
Fecho os olhos, já vi tudo.
O meu mundo é muito grande
E tudo que penso acontece.
Aquela nuvem lá em cima?
Eu estou lá,
Ela sou eu.
Ontem com aquele calor
Eu subi, me condensei
E, se o calor aumentar, choverá e cairei.
Abro os olhos, vejo um mar,
Fecho os olhos e já sei.
Aquela alga boiando, à procura de uma pedra?
Eu estou lá,
Ela sou eu.
Cansei do fundo do mar, subi, me desamparei.
Quando a maré baixar, na areia secarei,
Mais tarde em pó tornarei.
Abro os olhos novamente
E vejo a grande montanha,
Fecho os olhos e comento:
Aquela pedra dormindo, parada dentro do tempo,
Recebendo sol e chuva, desmanchando-se ao vento?
Eu estou lá,
Ela sou eu.


"Poemas", Adalgisa Nery

(Adalgisa Nery nasceu no dia 29 de Outubro de 1905. Morreu em 1980.)

Os meus cromos: Diogo Feio

Foto Hernâni Von Doellinger

José Chagas

Soneto da manhã primeira

Quero a manhã exata, a manhã viva,
pois estas luzes e estes voos na aurora
são só ensaios de manhãs. E agora
o que eu quero é a manhã definitiva,
 

a autêntica manhã pura, exclusiva,
manhã nascida de si mesma e fora
desta jubilação falsa e sonora
que só por um momento nos cativa.
 

Ah, a manhã da última promessa,
manhã de um novo mundo que começa,
mais acessível, mais humano e bom.
 

Meu Deus, seria como se chegasse
a manhã do primeiro sol que nasce,
a cor primeira e do primeiro som.


"Canção da Expectativa", José Chagas

(José Chagas nasceu no dia 29 de Outubro de 1924. Morreu em 2014.)

Caminho 259

                                                                                                                 Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Queimada Galela, inventada em Fafe para o mundo

Há três dias que o sítio oficial da Câmara Municipal de Fafe (Município de Fafe, porventura dir-se-á assim agora) anuncia a realização de uma "Queimada Galela" em honra do Halloween. Galela. Há três dias, pelo menos. É apenas uma gralha, acontece, mas em título é um azar do caraças. Porém ninguém viu, ninguém corrigiu. Se calhar ninguém lê o sítio da Câmara, tirante eu, e portanto não faz diferença. Possivelmente ninguém trabalha na "Comunicação" da autarquia, porque estão todos nas obras. Ou então está tudo bêbado...

O Benfica está contra

"O túmulo de Jesus foi aberto e vai ser estudado", informa o Público. O Benfica está contra. E já entregou os papéis e a merenda ao Pedro Guerra.

Paulo Varela Gomes 2

No chão havia uma barra de sabão azul e branco e não o pratinho com um líquido de textura duvidosa com que fingia que me lavava há semanas e semanas, pensão rasca após pensão rasca. Sabão azul e branco. Civilização. Um palácio.

"Era Uma Vez em Goa", Paulo Varela Gomes

(Paulo Varela Gomes nasceu no dia 28 de Outubro de 1952. Morreu em 2016.)

Rema, rema, ó remador!

                                                                                                                 Foto Hernâni Von Doellinger

Américo Durão

A Jesus crucificado

Volta de novo à Terra,
Alvo e manso Cordeiro,
Vem resgatar os homens
De pecados sem fim.

O preço do resgate
Só o teu corpo e o teu sangue
O poderão pagar.

Nesta hora de fé,
Eu te prometo e juro
Que hás-de tornar a ser
Por nós crucificado.

Ao cimo do Calvário,
Maria nossa Mãe,
A açucena da Terra
E o arco-íris do Céu,
Há-de estar a teu lado.

E o azul do seu manto,
Ao pé de ti, será
O luar refletido
Sobre o esplendor do Sol. 

"Poesias Completas", Américo Durão 

(Américo Durão nasceu no dia 28 de Outubro de 1894. Morreu em 1969.)

Caminho 258

                                                                                                                  Foto Hernâni Von Doellinger

Vianna Moog 4

Geraldo não consegue dormir. Faz várias tentativas para recomeçar uma leitura interrompida na véspera. Impossível. Não pode prestar atenção. Já fumou vários cigarros. Está descontente consigo mesmo, irritado, nervoso. O calor o incomoda: perturba-o a zoada dos mosquitos. Vira-se na cama de um lado para o outro e o sono não vem. Pesa-lhe a cabeça. Faz um derradeiro esforço para pensar em coisas agradáveis. Inútil. Impossível fugir de si mesmo. A discussão lhe fizera mal. E ele, afinal, se conduzira como um covarde. Para não comprometer a sua situação, o seu emprego, umas relações que para ele não tinham significação, deixara insultar a sua terra, a sua gente.
Na rua sopra um vento forte, uma nuvem de pó invade o quarto. Os fios da iluminação assobiam, parecem vaiá-lo. Longe, rola o bolão. De repente Geraldo lembra-se do pai, que fazia parte dessa sub-raça que ele deixara impunemente insultar. Preguiçoso, o seu pai... E as imagens daquela vida de heroísmo anônimo perpassavam-lhe pela memória. Primeiro via-o na sua fuga do Ceará, acossado pela seca. Tinha sido num ano em que as chuvas não vieram e a soalheira pintara de negro os campos. Via o pai no meio de uma legião dos caminhos esturricados, em demanda do litoral, cruzes toscas e anônimas balizando o roteiro daquela peregrinação de fantasmas. Do litoral, campo de concentração de todas as misérias do sertão, tomara o rumo do Amazonas, que era o primeiro destino que lhe apresentaram e que meio atonizado pelo sofrimento teve de aceitar. Embarcou como os outros para a Terra da Promissão, de que lhe falavam com hipérboles de entusiasmo os primeiros paroaras. Atravancavam o navio como o gado para o corte, em bandos consignados à morte, "com carta de prego para o desconhecido".

"Um Rio Imita o Reno", Vianna Moog 

(Vianna Moog nasceu no dia 28 de Outubro de 1906. Morreu em 1988.)

Lugares-comuns 430

                                                                                                                 Foto Hernâni Von Doellinger

Nilo Ramos

O choro da vela

Quando alguém morre, é logo acesa a vela...
E postada ali junto, a tudo alheia,
Comprida e erguida, feita sentinela
Aos pés do morto, triste bruxuleia.

Enquanto todos choram, também ela
Seu copioso pranto não sofreia;
E em lágrimas de cera se revela
Cheia de dor e de amargura cheia.

Ninguém mais chora, em breve. Ouve-se, lento,
Um murmúrio de rezas, um lamento
Que se evola de cada coração.

Só o choro da vela é que não finda:
Mesmo apagada já, ficam ainda
Gotas secas de pranto pelo chão.

Nilo Ramos

(Nilo Ramos de Araújo Pereira nasceu no dia 28 de Outubro de 1984. Morreu em 1935.)

Lugares-(in)comuns 211

                                                                                                                Foto Hernâni Von Doellinger

Xosé Filgueira Valverde 3

Nosa Señora da Barca
eu ben a vin no sol posto;
ten unha rosa na man,
outra na mazán do rostro.


Nosa Señora da Barca
eu ben a vin no sol novo;
ten unha estrela no mar,
outra dormida no colo.
 

Ten unha rosa na man,
outra na mazán do rostro.
Nosa Señora da Barca,
vinde vela no sol posto!
 

Ten unha estrela no mar
outra dormida no colo,
Nosa Señora da Barca,
vinde vela no sol novo!


"Seis Cantigas de Mar in Modo Antico", Xosé Filgueira Valverde 

(Xosé Filgueira Valverde nasceu no dia 28 de Outubro de 1906. Morreu em 1996.)

Caminho 257

                                                                                                                 Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

As minhas frases favoritas 79

Prontos...

Mobiliário urbano (propriamente dito) 14

                                                                                                                  Foto Hernâni Von Doellinger

Graciliano Ramos 4

Naquela noite de lua cheia estavam acocorados os vizinhos na sala pequena de Alexandre: seu Libório, cantador de emboladas, o cego preto Firmino e Mestre Gaudêncio curandeiro, que rezava contra mordedura de cobras. Das Dores, benzedeira de quebranto e afilhada do casal, agachava-se na esteira cochichando com Cesária.
- Vou contar aos senhores... principiou Alexandre, amarrando o cigarro de palha.
Os amigos abriram os ouvidos e Das Dores interrompeu o cochicho:
- Conte, meu padrinho.
Alexandre acendeu o cigarro ao candeeiro de folha, escanchou-se na rede e perguntou:
- Os senhores já sabem porque é que eu tenho um olho torto?
Mestre Gaudêncio respondeu que não sabia e acomodou-se num cepo que servia de cadeira.
- Pois eu digo, continuou Alexandre. Mas talvez nem possa escorrer tudo hoje, porque essa história nasce de outra, e é preciso encaixar as coisas direito. Querem ouvir? Se não querem, sejam francos: não gosto de cacetear ninguém.
Seu Libório cantador e o cego preto Firmino juraram que estavam atentos. E Alexandre abriu a torneira:
- Meu pai, homem de boa família, possuía fortuna grossa, como não ignoram. A nossa fazenda ia de ribeira a ribeira, o gado não tinha conta e dinheiro lá em casa era cama de gato. Não era, Cesária?
- Era, Alexandre, concordou Cesária. Quando os escravos se forraram, foi um desmantelo, mas ainda sobraram alguns baús com moedas de ouro. Sumiu-se tudo.
Suspirou e apontou desgostosa a mala de couro cru onde seu Libório se sentava:
- Hoje é isto. Você se lembra do nosso casamento, Alexandre?
- Sem dúvida, gritou o marido. Uma festa que durou sete dias. Agora não se faz festa como aquela. Mas o casamento foi depois. É bom não atrapalhar. 

"Alexandre e Outros Heróis", Graciliano Ramos

(Graciliano Ramos nasceu no dia 27 de Outubro de 1892. Morreu em 1953.)

Caminho 256

                                                                                                                 Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

O tradicional Halloween fafense

O Halloween americano vai ser comemorado em Fafe com uma queimada galega. A cerimónia decorrerá no convés de uma embarcação fenícia atracada em Calvelos e será oficiada por um feiticeiro haitiano de origem dinamarquesa. Todos os interessados devem apresentar-se ao evento com um galo de Barcelos ou com um caralho das Caldas. Figos secos algarvios e broa de Avintes à discrição.

Anjo da guarda, minha companhia

Foto Hernâni Von Doellinger

Todas as noites. A nossa mãe pegava em nós - na Nanda, no Nelo e em mim - e colocava-nos de joelhos e mãos postas, virados para a parede. Na parede do quarto da nossa mãe, por cima da cama de casal, estava pendurada uma daquelas gravuras do anjo da guarda. Rezávamos: Anjo da guarda, minha companhia, guardai a minha alma de noite e de dia.

(Morávamos na casinha amarela do Santo Velho. O quarto da nossa mãe, logo à entrada, era também a sala, o consultório da rua inteira. Eu era então o mais novo e os mimos eram todos para mim. Os mimos que a pobreza honrada permitia. Umas senhoras da Granja que trabalhavam no Centro de Saúde e passavam pelo Santo diziam que eu "até a chorar era bonito" - contava-me a minha mãe, cheia de vaidade, fazendo-me festinhas nos caracóis, e eu gostava. Quando a minha mãe se zangava comigo - e eu enchia-a de razões para isso -, dizia-me que eu tinha sido deixado lá em casa pelos ciganos...
Depois nasceu o Lando e acabaram-se-me as mordomias.)

Todas as noites. Após a oração ao anjo da guarda e o sinal-da-cruz feito "sem aldrabices", íamos para o nosso quartinho de duas camas, uma para a Nanda e a maior para o Nelo e para mim. A nossa mãe deitava-se enfim, exausta e nós não sabíamos, e ligava o rádio na Emissora Nacional. Dava teatro. Do lado de cá do tabique, eu, o Nelo e a Nanda pedíamos "mais alto". Também queríamos. (Ou)víamos silentes e na maior das comoções, porque aquelas histórias não eram para brincadeiras. Interrompíamos apenas para um que outro pedido de esclarecimento acerca da senhora que fazia a vida negra ao senhor e que, todos concordávamos, era "uma cabra".
O teatro terminava, vinha a ficha técnica - porventura Jorge Alves, Manuel Lereno, Carmen Dolores, Rui de Carvalho, Eunice Muñoz ou Canto e Castro... nos papéis de -, mas a nossa mãe só desligava depois do "Samuel Dinis ensaiou", que era mesmo o fim, e o rádio dizia "Denis". Trocávamos boas-noites dum lado para o outro do tabique. "Agora vamos dormir", mandava a nossa mãe, e nós apertávamo-nos aos cobertores, contentes pela soirée e mortinhos por obedecer.

Todas as noites. Cinco ou dez minutos passados, a minha mãe dava um toquezinho na parede e perguntava, numa voz de embalar:
- Estais a dormir?
- Eu estou - respondia sempre eu.
- Lindo menino - dizia a minha mãe. E eu adormecia feliz.

(Texto escrito e publicado originalmente, e quase assim, no dia 25 de Julho de 2014)

Lugares-(in)comuns 210

                                                                                                                Foto Hernâni Von Doellinger

Darcy Ribeiro

Amor

Quero um amor alucinado, depravado, tarado.
Amor inteiro, de corpo-a-corpo, enlaçados.
Amor sem reserva, que a tudo se entrega, lancinante.

Quero você assim, abrasada, pedindo gozo,
Eriçada, ronronando feito gata, tesuda.
Seus seios túmidos, me furando o peito.

Quero você, pentelho contra pentelho, roçantes.
Carne encravada na carne. Bocas coladas,
Babadas, meladas, sangrando sufocadas.

Quero amar você tão bichalmente que urremos.
Eu, penetrando rasgando. Você me comendo furiosa.
Nós dois fundidos, unidos, soldados.

Você e eu, nos dois, sós, neste mundo dos outros...

"Eros e Tanatos", Darcy Ribeiro

(Darcy Ribeiro nasceu no dia 26 de Outubro de 1922. Morreu em 1997.)

Caminho 255

                                                                                                                  Foto Hernâni Von Doellinger

Murilo Araújo 4

Visão

Tenho à noite a visão de que as estrelas de ouro
vão descendo ao meu sonho e vêm dançando em coro.

Sinto-as numa nevrose...
numa fascinação... numa alucinação!
– quer agonie ou goze -
eu as sinto nevoentas,
lânguidas e luarentas,
uma por uma dando o pálido clarão!

Uma diz: "chamo-me Apoteose!"
Outra diz: "chamo-me Afeição!"
Outra é, levíssima, a Confiança,
Outra - a Lembrança,
Outra - a Ambição...

E assim tenho a visão de que as estrelas de ouro
Vêm, dançando, ao meu sonho e vão descendo em coro.

Mas choro de aflição...
pois falta a estrela que procuro em choro,
falta a que foi na terra um vulto louro,
falta a que está nos céus e acha desdouro
descer e iluminar-me o coração!...

"Carrilhões", Murilo Araújo
 
(Murilo Araújo nasceu no dia 26 de Outubro de 1894. Morreu em 1980.)

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Lugares-(in)comuns 209

                                                                                                                  Foto Hernâni Von Doellinger

A culpa foi dos enfermeiros

Dois enfermeiros foram constituídos arguidos "no caso dos dois alunos do 127.º curso de Comandos que morreram após se terem sentido mal durante um treino num campo de tiro, em Alcochete, no início de Setembro." O Ministério Público "investiga abuso de autoridade" e suspeita "de omissão de auxílio" - informa o Público.
Evidentemente que a culpa é dos enfermeiros. Os Comandos não têm mordomo...

Eu era mais côdea de broa com açúcar amarelo

Foto Hernâni Von Doellinger

Conhecia-os de vista. De passar pelas montras ou das mesas do Peludo, mas nunca me tinham sido apresentados. Até que uma vez o meu pai trouxe meia dúzia para casa. Vinham naquela caixinha de papel, obra de engenharia feita na hora, ali mesmo aos olhos do freguês, com a habilidade, a precisão e o requinte de quem trabalha filigrana, de quem constrói um avião. Se me estou a lembrar bem, havia, naquele tempo, os bolos de arroz, as bolas de berlim, os queques, os jesuítas, os caramujos, os mil-folhas, as natas e os cocos. As tíbias apareceram depois, já na era das minissaias.
O meu pai chegou muito tarde "da música" e se calhar os pastéis vinham por isso, para adoçar a boca à minha mãe. Não tenho a certeza. Era pequeno demais para então perceber o que agora sei tão bem. Mas gostei da festa que foi: acordámos - a Nanda, o Nelo e eu -, sentámo-nos todos na beira da cama da frente, ao lado da nossa mãe, provámos a novidade, o nosso pai fez-nos rir e fomos felizes. (O nosso pai gostava muito de fazer rir a nossa mãe.) Então pastéis era aquilo? Era bom. Para mim, quase tão bom como uma côdea de broa coberta com açúcar amarelo.

Fafe era um terra de antonomásias. No nosso imenso pequeno mundo, tínhamos o Largo, a Avenida, o Monumento, a Recta, o Campo, o Depósito, o Banco, os Serviços, a Bomba, o Jardim, a Quelha, o Santo, a Fábrica e o Café, que era o Peludo, na verdade Cine-Bar. Nada admitia comparações. Mas cafés e tascos havia muitos: uma mão-cheia de cafés, e tascos até dar com um pau, para ser mais preciso. Os cafés de Fafe, indesmentíveis baluartes civilizacionais que foram, alfobre de uma das mais respeitáveis gerações de coçadores de bolsos do século XX português, eram o Império, o Arcada, o Avenida, "a" Cafelândia e o meu Peludo, felizmente ainda nem todos passados a bancos ou casas de penhores. Pastelarias, salões de chá ou snack-bares é que nada, até aparecer o Dom Fafe, mesmo no centro da vila, coisa fina e para clientela sem gases. O Dom Fafe passou a ser o Snack-Bar.

Para nos situarmos na História, estávamos no glorioso tempo das calças de terilene e das camisas Triple Marfel. Nas Lobas começavam a chegar os fatos pronto-a-vestir, que eram do Corte Inglés e eu julgava que eram "de corte inglês", por causa dos filmes do 007. As famílias remediadas e espertas ainda iam à Riopele, em Pousada de Saramagos, escolher o tecido para o fatinho do dia do casamento. Gastava-se em gasolina e na indispensável merenda pelo caminho dez vezes mais do que se poupava naquela extraordinária pechincha de outlet, ainda os outlets não tinham sido inventados, e depois era só somar a conta do alfaiate por medida. Enquanto isso, nós os pobres vestíamos galhardamente o cotim da Fábrica do Ferro...

Tornando ao Peludo: eu era calisto. Calisto televisivo. A preto e branco e com muitos pedimos desculpa por esta interrupção. Para me fazer pagar a moina, o Sr. Avelino do Café, que era o Hoss do "Bonanza" em pessoa menos o chapéu, confiava-me umas moedas e mandava-me à cozinha do Hospital buscar uns enormes tijolos de gelo que ele depois partia e metia no barril de tirar finos (imperiais, se lido em Lisboa). No fim do recado dava-me o troco? É o davas. Oferecia-me um pastel? Fodias-te. Eu tinha para aí sete anos, o meu pai ainda não tinha trazido pastéis para casa e o Sr. Avelino (o tempo fez-nos amigos) punha-me à frente a merda de um cimbalino. Sete anos, e ele dava-me um café. Se ao menos fosse um cigarro...

Não sou de doces. E, dos pastéis que o meu pai trazia para casa, o que eu gostava mais era da festa, do riso. Daquela meia hora extra fora da cama. Da sensação de família e fartura, da felicidade antes do sono. Porque o meu doce preferido era outro: era a côdea de broa, "grande daqui até ao céu", enfiada às escondidas na lata do açúcar amarelo (tinha que subir à mesa da cozinha para chegar ao armário) e comida na clandestinidade do fundo do quintal. Isso, sim, era o meu bolo. Havia lá coisa melhor no mundo!? Por acaso até havia: era a gemada. Mas essa só podia ser duas vezes por ano, acho eu, pela passagem de classe e no meu aniversário. Com os ovos, lá em casa, todo o cuidado era pouco. Estavam contados, eram para "deitar". E ao açúcar a minha mãe fechava os olhos. Porque a minha mãe sabia tudo. Digo melhor: a minha mãe sabe tudo, e é o tempo do verbo que nos faz felizes.

(Texto escrito e publicado no dia 7 de Junho de 2012. Hoje junto-lhe a foto e mais duas ou três coisinhas.)

Suecódromo 3

                                                                                                                  Foto Hernâni Von Doellinger

Manuel Leiras Pulpeiro 2

Si querés desmorriñarme,
levaime pra onde o mar vexa,
e os seus airiños me cheguen,
e o sinta cuando referva;
levaime pra onde máis zoupe
e máis se esfache nas penas
e, ao reventaren as olas,
mover os salseiros sexan;
ou, de non, leváime a donde
poida ter a man, siquera,
pra espellarme, iunhas pociñas
entre os xuncos da ribeira!

"Obras Completas", Manuel Leiras Pulpeiro

(Manuel Leiras Pulpeiro nasceu no dia 25 de Outubro de 1854. Morreu em 1912.)

Caminho 254

                                                                                                                Foto Hernâni Von Doellinger

Manuel Lago González 2

O derradeiro celta

Chega ond'a cerca do castro,
mira pro fondo do val,
finca na parede o codo,
deita a cabeza na mau,
e namentras que coa outra
arricando musgue está,
pensatible, triste e morno,
así se pon a falar:

- Alá van os nosos eidos,
a miña casa alá vay;
xa me mataron os fillos,
matárom'a muller xa;
morreron os nosos homes
que souperon peleyar,
morréron-nos os druidas
servidores de Teutás,
e matáron-nos as virxes
que'andaban ó pé do altar
ca fouce d'ouro no cinto
y-a vara verde na mau.
Xa queimaron a devesa
consagrada á soledá...

Ay! Cando funguen os ventos 
nas polas do castañal 
xa non ruxirán as armas
qu'alí tiñan nosos pais...!
Donde fixemos fogueiras
os carrascos nacerán,
e no dolmen en que'ibámos
de noite a sacrificar,
criáranse herbas e toxos
y-os mouchos aniñarán...
Cobrirán silvas y-adreiras
as pedras do noso lar,
e sobr'as mámoas dos mortos 
xente allea pasará...
Cando se mova o penedo
qu'está na veira do mar
xa non irá xente nosa
con ofrendas a Teutás,
Ay! De todo o que nós temos
nin migallas quedarán...!

Así dixo o vello, e séntase,
cravando os ollos no chan.
E ó pé do castro, qu'as brétemas
da noite cubrindo van,
tamén de loito cuberto
maxinando tanto mal,
soliño, entr'as negras ruinas,
sóltase, o probe, a chorar! 

Manuel Lago González

(Manuel Lago González nasceu no dia 25 de Outubro de 1865. Morreu em 1925.)

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Mobiliário urbano (propriamente dito) 13

                                                                                                                Foto Hernâni Von Doellinger