quinta-feira, 30 de junho de 2016

Fafe acolhe feira de teatro de bonecos


Feira de Teatro de Bonecos e Formas Animadas, em Fafe, de 7 a 9 de Julho. Bonecos, marionetas, fantoches e formas animadas - memórias frescas dos velhos robertos das nossas feiras e praças. Mais de quarenta espectáculos nas mãos de mais de trinta companhias de teatro, de quase uma dezena de países. Mais informação, aqui e aqui.

Lugares-comuns 354

                                                                                          Foto Hernâni Von Doellinger

Se uma gaivota viesse, cada duas são um par 5

Minha varanda, meu castelo
No prédio onde eu moro, a minha casa é a única que não tem marquise ou paramarquise na varanda. Dá nas vistas, é verdade, destoa, e todos os dias tenho a caixa de correio assediada por uns quantos panfletos em quadricromia e papel couché que me oferecem o sufoco a xis euros o metro quadrado. Muito agradecido, mas passo: a varanda faz-me falta tal qual está.
Gosto de correntes de ar, que hei-de fazer? Gosto de terra e gosto de mar. E gosto de levar com a terra e com o mar nas ventas. Gosto dos cheiros. Gosto de pensar (ou de pensar que penso), gosto de refrescar ideias. A minha varanda é o meu retiro. E é o meu quintal, a minha esplanada, o meu posto de vigia. Gosto de semear, de regar os vasos, de espreitar o nanocrescimento dos coentros, da salsa e do tomilho, gosto de fumar a minha cachimbada e beber o meu CRF "em balão previamente aquecido", gosto de ver passar navios, conto-os, reconheço-os. Condenaram-me a isso, a ver navios, mas eu gosto. Antes condenado a ver navios do que condenado às galés, não é verdade? É. Sou, evidentemente, um gajo cheio de sorte.
Estão a ver a cabeça daquele cromo assamarrado e de chapéu enfiado até às orelhas, sentado na varanda, ignorante da chuva e do frio, de braço de fora, cachimbando e olhando o mar? A cabeça é minha, o cromo sou eu. Não podem ver, mas tenho uma manta a agasalhar-me as pernas. Estou muito bem, não se preocupem.
E estão a ver a gaivota, empoleirada no parapeito e quase em cima de mim? É a tal, a cagona que não me larga. A gaivota também sabe que ali é santuário, lugar de pensamento e liberdade. Somos cúmplices, praticamente almas gémeas. Mas a gaivota abusa, caga na varanda propriamente dita, o que enfurece a minha mulher. Eu, enquanto tomo nota de mais um barco que entra no Porto de Leixões, peço simplesmente à gaivota que, se é minha amiga, vá pelo menos uma vez cagar em cima das cabeças dos senhores Jeroen Dijsselbloem e Wolfgang Schäuble.


O meu barbeiro
O meu barbeiro atacou-me à traição: falou-me de barcos. Tínhamos uma combinação tão antiga e cómoda de só comunicarmos um com o outro por sinais, e ele apanha-me o ponto fraco e obriga-me à conversa: barcos. Nós sabíamos que, portismos à parte, tínhamos também isto em comum, os barcos, mas era como se não soubéssemos, disfarçávamos silenciosamente, numa cumplicidade camarada, coisa de velhos embarcadiços. O Sr. Fernando, que é um artista de mão cheia, foi, no seu tempo, escanhoador-mor a bordo do navio-escola Sagres; e eu há 2.585 dias que sou contador de navios a bordo da minha varanda com vista para o mar (se me puser de lado).
Foi assim. Diz-me o meu barbeiro, sem mais nem menos, "Aquilo agora em Leixões os cruzeiros são uns atrás dos outros". Parece coisa de nada, não é?, apenas deixada no ar, mas ó palavras que me disseste: Leixões e cruzeiros! Senha e contra-senha. Ao ataque!, pensei eu mais com a língua do que com a cabeça, esquecendo-me de que queria estar calado. Esqueci-me também da bóia e afoguei-me no relambório. Que "Pois de facto, só no ano passado foram 85" e que "Eu é que os vejo passar, estou lá em cima a tomar conta" e que "Até os fotografo" e que "Até já conheço alguns ao longe, como por exemplo o Albatroz, o Aurora, o Azura que é irmão do Ventura, o Boudica, o Crystal Symphony, o Queen Victoria, o Marina, o Celebrity Constellation ou o Costa Pacifica", rasam-me aqui a porta de casa, e que "O Porto de Leixões é um sucesso, um batedor de recordes que despeja milhares de turistas nas cidades de Matosinhos e Porto e milhões de toneladas de mercadorias para o país inteiro, e dei-lhe mais números, e comparei-lhe períodos homólogos, e disse mesmo "períodos homólogos", que nunca na minha vida tinha dito, e meti-lhe percentagens entre parênteses, e desenhei-lhe gráficos com setas a apontarem para cima, e desabafei que "Um dia destes um filho da puta qualquer vai foder isto tudo, sentado numa secretária em Lisboa". E foi assim que eu falei. Mas em ponto grande.
O meu barbeiro, que aqui atrasado não acreditou em mim quando eu lhe disse que não sou mudo, estava o barbeiro mais feliz do mundo. Pasmado, de pente e tesoura suspensos no ar, como bailarina sevilhana pronta a tocar castanholas. O paleio ia de vento em popa. O meu barbeiro servia à pinta. Os barbeiros são óptimos a servir à pinta. Que "Sim" e que "Sim" e que "Sim" e que "Sim", "Sim senhor", "Não me diga", "Parece impossível". Falámos por quase 30 anos de silêncio. Mas conversa sobre barcos leva longe: já íamos nos fados, vejam bem. Olhei para trás e não vi terra, a minha varanda. Tive medo e parei ali. Levantei a mão direita numa saudação índia atabalhoada, fiz "Ugh!", paguei e nadei até casa.

À roda da cadeira do meu barbeiro começavam a sair os primeiros acordes de La Boda de Luis Alonso.

A ver navios 95

                                                                                       Foto Hernâni Von Doellinger

As minhas frases favoritas 41

Isso traz volta de foda...

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Festas da Senhora de Antime 2016 (cartaz)


Festas do Concelho de Fafe, em honra de Nossa Senhora de Antime. De 6 a 10 de Julho. Mais informação, aqui.

Terra Mãe, ecofestival em Fafe


Festival Terra Mãe, em Fornelos, Fafe, no fim-de-semana de 22 a 24 de Julho. Concertos, danças, oficinas, palestras, caminhadas e muito mais. "Três dias para mudar o mundo, três dias para mudar de vida" é o mote para um ecofestival que, de acordo com os seus organizadores, "pretende ser uma grande sala de exposição das artes tradicionais, ligado a grandes causas ambientais e com uma forte componente social". Mais informação, aqui e aqui.

Caminho 162

                                                                                                                Foto Hernâni Von Doellinger

Se uma gaivota viesse, cada duas são um par 4

O azar da gaivota é não ter nascido lince (ou lagarto de água, vá lá)
"As câmaras do Porto, Matosinhos e Gaia colocaram em curso medidas para travar a proliferação de gaivotas naquelas cidades, com destaque para a proibição de alimentar as aves, colocação de pinos em edifícios e falcões no rio Douro", contava-me a agência Lusa num domingo de Páscoa, rapidamente copiada urbi et orbi pelos jornais de redacções vazias.
Duas das medidas a aplicar pelo Porto - que, entre Gaia e Matosinhos, é sempre o paradigma - são "a georreferenciação de pedidos de intervenção relacionados com gaivotas para estabelecer um plano de controlo do sucesso das medidas preventivas e a realização de acções de sensibilização quando se identificam situações irregulares de alimentação dos animais com entrega de brochuras". Não percebo o que este palavreado quer dizer, mas gosto muito da "georreferenciação", gosto sobretudo de "brochuras" e... cheira-me a Eichmann.
A Protectora terá decerto uma salomónica palavra a dizer sobre o assunto. E a inefável Quercus também. Talvez: devemos amar e respeitar os animais; se forem muitos (e mesmo animais) é que não. Que se lixem os garranos de Paredes de Coura, salvemos os gatos lambe-cricas e os cães zicos, choremos os simbas, acorrentemo-nos à porta do Coliseu pelos lagartos de água. Ou então paguem! Orwell já tinha avisado: todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros.
Como os meus caros três leitores sabem, eu tenho duas gaivotas. Era uma mas agora são duas, tal qual os amores do Marco Paulo eram dois.
Um destes dias a minha mulher põe-me fora de casa por causa das gaivotas, que me cagam generosamente a varanda e enxovalham a roupa a secar. Porque a verdade é esta: apesar de cagonas, eu quero-as; mas a minha mulher enxota-as. Serão ciúmes? É preciso que se note que as minhas são as duas mais belas gaivotas de Matosinhos. E eu, por mim, ficava com elas...


Anda um melro na minha rua
A minha rua adoptiva, em Matosinhos-sur-Mer, é território de gatos e gaivotas. De umas pombas, vá lá, de uns pardejos lingrinhas e de uns cães cagões e felizmente sem asas. Mas sobretudo, e historicamente, a minha rua é território de gatos e gaivotas, que vêm ao cheiro da comida que a minha vizinha lhes manda da varanda, besuntando de espinhas, patas de frango e nojo a estrada e o passeio, mesmo por baixo do meu nariz. A minha vizinha é que chamou as gaivotas, mas agora enxota-as a baldes de água fria, porque, não sei se mudou de religião, só quer conversa com os gatos.
Ora bem: há quase trinta anos que moro na minha rua e foram precisos quase trinta anos para que me aparecesse na rua um melro. Sim, um melro, efectivamente, e apresenta-se todas as manhãs. Melro cantor que dá gosto, e lambão benza-o Deus, também vai à marmita dos gatos, um destes dias desaparece corrido a encharcado pela minha vizinha, se não for coisa pior.
E eu, perante isto? Eu gostei muito que o melro tivesse dado com a minha rua e com a frente da minha casa. Grande melro! É porreiro porque, assim, já somos dois. 

Lugares-comuns 353

                                                                                                                 Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 28 de junho de 2016

As minhas frases favoritas 40

Já mandei os papéis para baixo...

Caminho 161

                                                                                                                 Foto Hernâni Von Doellinger

Se uma gaivota viesse, cada duas são um par 3

A visita das duas cagonas
Que sou especialista na matéria, deixei-o bem explicado em A verdade sobre as gaivotas, ensaio escrito e publicado pela primeira vez na edição do Tarrenego! de 10 de Junho de 2013 e que, em 2014, viria a valer-me o Prémio Príncipe das Astúrias de Investigação Científica e Estampilhas Fiscais relativo ao ano de 1971. Estudo-as há mais de um quarto de século, sei tudo sobre gaivotas. A rotina ou o hábito, consoante o que acontecer primeiro, dão nisto: criou-se-nos uma certa intimidade, e a bem dizer eu e elas já não passamos um sem as outras. Elas ainda não vêm comer-me à mão, isso é verdade, mas vêm cagar-me à varanda. E com a maior das descontracções e acrisolada acutilância. Temo até que uma certa e determinada gaivota esteja a abusar da confiança - e sei que é gaivota e não gaivoto porque a criatura trouxe ontem uma amiga, e as gajas é que vão aos pares arriar o calhau, isso também está provado. As duas cagonas visitaram-me ontem e borraram-me as cuecas. Entre sessenta e seis peças de roupa na seca do estendal, as badalhocas apontaram às minhas cuecas e ainda por cima à parte da frente, parecia um ovo estrelado muito bem passado, mas com merda em vez de ovo. Pontaria filha da puta. A minha mulher afina com estas coisas e eu... rio-me.
Mas o caso não é para rir. A gaivota anda a escangalhar-me o lar derivado à assiduidade com que ultimamente me caga em cima. A minha mulher começa a desconfiar, e agora já são duas gaivotas, mas eu defendo-me e digo: não é nada comigo, elas devem é estar na época de acagamento. Ou, como diz o povo, e com razão: quando caga uma gaivota, logo outra saralhota. O que é que eu posso fazer? Não fui eu que comecei...


Os animais de tiro e os... caracóis
Animal ou besta de tiro: animal que puxa um carro, na definição simplificada e simplista do dicionário à la portuga. Ou, melhor explicado, animal utilizado como tracção para o transporte de pessoas e mercadorias, aparelhos agrícolas como, por exemplo, o arado, ou como motor de noras e moinhos (chamam-se em Espanha moinhos de sangue).
Os principais animais de tiro são os cavalos, as mulas e os burros, os bois e as vacas, os ónagros, os camelos e dromedários, os iaques, os búfalos de água, os lamas, os alces e as renas do Pai Natal, os elefantes, os portugueses em geral, as avestruzes e os cães. Os cães, que antigamente tiravam só praticamente no Alasca e para o cinema e agora também puxam por jovens skaters preguiçosos do Porto e Matosinhos.

Outros animais de tiro, mas por outras razões, são, aqui que ninguém nos ouve: o coelho-bravo, a lebre, a raposa e o saca-rabos; a perdiz-vermelha, o faisão, o pombo-da-rocha, o gaio, a pega-rabuda e a gralha-preta; o pato-real, a frisada, a marrequinha, o pato-trombeteiro, o marreco, o arrabio, a piadeira, o zarro-comum, a negrinha, a galinha-d´água, o galeirão, a tarambola-dourada, a galinhola, a rola-comum, a rola-turca, a codorniz, o pombo-bravo, o pombo torcaz, o tordo-zornal, o tordo-comum, o tordo-ruivo, a tordeia, o estorninho-malhado, a narceja-comum e a narceja-galega; o javali, o gamo, o veado, o corço e o muflão.
Para não saberem que vão morrer, a estes animais de tiro chamam-lhes espécies cinegéticas. É preciso que se note que o melro saiu da lista dos abatíveis em 2011, por ordem de Daniel Campelo, então secretário de Estado das Florestas e do Desenvolvimento Rural. Uma medida que seguramente marcou um mandato, ainda que breve.

Já os caracóis são obviamente animais de tiro porque andam com a casa às costas - o que não acontece com as primas lesmas, essas viscosas sem-abrigo -, mas, pelos vistos, gostavam de ser ainda mais. Uma campanha em nome destes simpáticos moluscos gastrópodes terrestres foi lançada pelos seus representantes legais, uma rapaziada bem disposta que sobretudo não quer que eles, os caracóis, sejam cozidos vivos. Seria, portanto, de lhes enfiar um balázio na cabeça, aos caracóis, e, então sim, metê-los na panela. Aos caracóis.
Com a coitada da lagosta é que ninguém se importa. Se calhar por ela ser podre de rica e pelar-se por uma sauna bem suada. Invejosos de merda...

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                                                                                                                                              Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Teatro Universitário do Porto apresenta Escombros

O Teatro Universitário do Porto (TUP) apresenta "Escombros", a partir de "A Varanda", de Jean Genet. É o espectáculo final do Curso de Iniciação à Interpretação 2016 e tem encenação de António Júlio. De 2 a 16 de Julho, e de terça a domingo, sempre às 22 horas, no palco do TUP, na Praça Coronel Pacheco, n.º 1, Porto. Mais informação, aqui.

As minhas frases favoritas 39

A tua sorte é que eu não me importo...

Festas do Mártir S. Sebastião 2016 (programa)

                                                                                      Foto Hernâni Von Doellinger

Estão aí à porta. São, a bem dizer, a festa da minha rua. A minha festa. As "Grandiosas Festas", e fazem jus à pompa do nome, em honra do Mártir S. Sebastião, ou, simplesmente e como eu gosto mais, a Festa dos Pescadores de Matosinhos. Este ano, no terceiro fim-de-semana de Julho - dias 15, 16 e 17 -, com epicentro na Lota do Pescado do Porto de Leixões, como manda a tradição e com o programa que se segue:

Sexta-feira (dia 15):
21h30 - Inauguração das ornamentações eléctricas.
22 horas - Na Lota do Pescado, noite de baile com a atuação do grupo musical Os Tekos.

Sábado (dia 16):
14h30 - Frente à Casa Museu (Bairro dos Pescadores, junto à Capela da Misericórdia), concentração dos grupos folclóricos e Fanfarra dos Bombeiros Voluntários de Matosinhos-Leça, que seguirão em desfile até à Capela do Santo Padroeiro, na Casa dos Pescadores. O desfile continua depois até à Lota do Pescado, onde decorrerá o Festival Folclórico. Actuam: Rancho Folclórico "Os Pescadores de Matosinhos", Rancho Folclórico "Os Vareirinhos de Matosinhos", Rancho Típico de Esposade - Matosinhos, Rancho Folclórico de Nogueira - Lousada, Grupo de Danças e Cantares de Cortegaça - Ovar, Grupo de Danças e Cantares de Santiago de Bougado - Trofa.
22 horas - Espectáculo com Zé Amaro e sua banda.

Domingo (dia 17):
10h30 - Na Igreja Matriz, Missa Solene.
15 horas - Sai da Igreja Matriz a tradicional procissão, apontando à Bênção do Mar na Lota do Pescado. A procissão passa pela Avenida D. Afonso Henriques, Avenida da República, Avenida Serpa Pinto, Rua 1.º de Dezembro, Rua Heróis de França, Praia do Pescado, Rua Conde S. Salvador, Rua Álvaro Castelões, Rua do Godinho, Avenida D. Afonso Henriques e regressa à Igreja Matriz.
22 horas - Espectáculo com o agrupamento musical Fusiforme.
24 horas - Fogo-de-artifício.

A cidade das traseiras 11

                                                                                                                  Foto Hernâni Von Doellinger

As minhas frases favoritas 38

Adeus, até ao meu regresso...

Nova corrida, nova viagem 21

                                                                                                                 Foto Hernâni Von Doellinger

Se uma gaivota viesse, cada duas são um par 2

A verdade sobre as gaivotas
Gaivotas é comigo. Tenho até uma que faz questão de me vir cagar à varanda. Estou agora a escrever e estou a ouvi-las, a vê-las à minha frente, do lado de lá da janela. Eu e as gaivotas somos inseparáveis. Cúmplices. Somos um para as outras. Fui o primeiro a alertar para os perigos que corre o extraordinário gaivotal da Riguinha e Carcavelos, orgulho e emblema da Praia de Matosinhos. As gaivotas interessam-me. Cagam-me em cima, é certo, mas muito menos do que me cagavam o Portas e o Passos Coelho, e eu não os conheço de lado nenhum e não me interessam para nada.
Gaivotalmente falando, levo já mais de 25 anos de trabalho no terreno, eu e elas, contra a vontade da minha mulher, por causa da limpeza da varanda. Estou portanto em condições de afirmar, sem temer desmentidos, que sei de gaivotas como se fosse gaivoto. Houvesse um presidente da república das gaivotas e seria eu. E já tivemos um presidente da república das cagarras.
Ora bem. Outro especialista, mas este da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves, disse às notícias que as gaivotas andam a mudar-se do mar para a cidade. Pois andam. O caro colega afiança também que o "fenómeno" começou exactamente há dez anos, mas que, atenção, está a aumentar com "o calor elevado que se faz sentir neste momento".
Não sei se o "fenómeno" começou mesmo há dez anos - não os contei, não sei sequer se o "fenómeno" é fenómeno realmente, mas afirmar que a vaga de calor dos últimos dias puxou as gaivotas ainda mais para terra é ciência de atirar à sorte a ver se acerta. E não acertou. Ou então as gaivotas de Matosinhos são umas desalinhadas, só para chatear.
Explico. Hoje há um nevoeirinho manso ali na praia, uma brisazinha de norte passa aqui pela rua como quem não quer a coisa, e elas aí andam, as minhas gaivotas, nos telhados, na varanda, conversadeiras e cagonas, aproveitando a fresca como eu. Mas nos dias de brasa da última semana, não. Pelo contrário. A canícula devolveu-as ao mar e estragou a teoria de sofá do ilustre ecologista. Quem as quisesse ver, era na água, bandos imensos, uns cem metros para dentro da linha de rebentação. Porque não são parvas. É. Já escrevi e repito: as gaivotas têm merda na barriga, não na cabeça.


Até para se ser pega é preciso ter sorte
A notícia espalhou-se como fogo em mato seco: um automobilista acabara de atropelar mortalmente uma pega, toda esmigalhadinha. Assassino! Juntaram-se imediatamente a Quercus, o PAN, a Protectora dos Animais, a Greenpeace, dois dirigentes dos Super Dragões e vários elementos do movimento cívico e espontâneo SOS Grilo Careca de Asa Redonda e Perna Curta, que está muito bem organizado para estas emergências. Rodearam o carro, arrancaram o automobilista cá para fora e encheram-no de carolos e caneladas, para ele aprender. Só não chegaram ao linchamento porque, regra geral, desconheciam a palavra, e os poucos que a conheciam de vista confundiam-na com lixamento e achavam que, para lixar o energúmeno, os carolos e as caneladas já estavam bem.
Apareceu a GNR. A autoridade aproveitou para também molhar a sopa, quer-se dizer, o automobilista caiu sozinho sobre duas secretárias e esbarrou-se sem ninguém lhe tocar num armário ali no meio da via, e, posto isto, ordenou-lhe que se explicasse. O automobilista explicou-se. E convenceu. A Quercus, o PAN, a Protectora dos Animais, a Greenpeace, os dirigentes dos Super Dragões, os espontâneos do SOS Grilo Careca de Asa Redonda e Perna Curta e a própria GNR fartaram-se de pedir desculpas ao homem e até lhe deram os parabéns. Tudo não passara de um pequeno mal-entendido, erro de comunicação. Afinal o automobilista não tinha morto uma pega ou Pica pica melanotos, seria uma tragédia, tinha apenas atropelado mortalmente uma pega meretriz de beira de estrada, solteira e mãe de três filhos, toda esmigalhadinha. São coisas que acontecem... 

Lugares-comuns 351

                                                                                                                Foto Hernâni Von Doellinger

Guimarães Rosa 4

Reportagem

O trem estacou, na manhã fria,
num lugar deserto, sem casa de estação:
a parada do Leprosário...

Um homem saltou, sem despedidas,
deixou o baú à beira da linha,
e foi andando. Ninguém lhe acenou...

Todos os passageiros olharam ao redor,
com medo de que o homem que saltara
tivesse viajado ao lado deles...

Gravado no dorso do bauzinho humilde,
não havia nome ou etiqueta de hotel:
só uma estampa de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro...

O trem se pôs logo em marcha apressada,
e no apito rouco da locomotiva
gritava o impudor de uma nota de alívio...

Eu quis chamar o homem, para lhe dar um sorriso,
mas ele ia já longe, sem se voltar nunca,
como quem não tem frente, como quem só tem costas...


"Magma", Guimarães Rosa

(Guimarães Rosa nasceu no dia 27 de Junho de 1908. Morreu em 1967.) 

Caminho 160

                                                                                                               Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 26 de junho de 2016

Se uma gaivota viesse, cada duas são um par

Em balão previamente aquecido
(Aviso: o que se segue é um texto de merda.)
Moro mesmo em frente ao mar, se me puser de lado na varanda. E é na varanda que, depois de um jantar mais coisa e tal como o de ontem, eu gosto de fumar a minha cachimbada e beber um fundinho de CRF em balão previamente aquecido. "Em balão previamente aquecido". Não sei quem foi o génio que inventou a frase e o conceito, mas, já repararam?, sabe quase tão bem dizê-lo como bebê-lo.
E balão, para mim, é mesmo balão. Não um balãozinho ou um balo. É balão, bojudo e de boca larga, tipo Alberto João Jardim. O conteúdo até poderá ser pouco, e é, um dedo apenas e medido pela minha mulher, mas o continente quero-o pela medida grande.
Moro em frente ao mar, dizia eu, e tenho uma vizinha que dá de comer às gaivotas. A sério, dá de comer aos gatos e às gaivotas. E as gaivotas, que vêm ao cheiro, não me largam a varanda. De dia e de noite. Todos os dias e todas as noites. Creio que ainda ninguém explicou a estas gajas que só me deveriam bater à porta em caso de tempestade marítima.
Ora, a gaivota é um bicho que, como a maioria dos portugueses, come qualquer merda e anda quase sempre de soltura. Resultado: quando abre a cloaca, e aquilo é um porto franco, só de saída, chovem cagadas de alto lá com elas. Quem tinha capacete, tinha; quem não tinha, que tivesse. Isto é ciência.
Portanto, moro praticamente em frente ao mar e estava na varanda à conversa com o CRF em balão previamente aquecido, deitando um olho, de quando em vez, ao Gil Vicente-Olhanense, e isto é que eu ainda não tinha dito. Foi num desses momentos, no exacto momento em que eu disponibilizei o meu olho esquerdo para mais um fora-de-jogo mal assinalado, ainda por cima, que a puta da gaivota do costume - já te conheço a fronha, ó cagona - resolveu aliviar lastro, com uma pontaria tamanha que me acertou em cheio no indefeso balão de boca larga.
Antes de ficar realmente fodido, pensei: isto é uma metáfora do pobre país que somos, todos nos cagam em cima, até as gaivotas, e pela boca morre o peixe. Bebi um golo e não era metáfora nenhuma, era merda. Para a próxima vou beber o CRF num balãozinho, de boquinha apertadinha. Com menos merda, e previamente aquecido, não há-de saber tão mal.


Salvemos o gaivotal da Praia de Matosinhos!
O estuário da ribeira da Riguinha e Carcavelos é a principal atracção turística da Praia de Matosinhos. E tem um valor ecológico incalculável. Mas não está legalmente protegido e essa omissão é um perigo. Vamos admitir que, por absurdo, algum maluco episodicamente com poder se lembrava de subterrar o curso de águas, introduzindo-o directamente no oceano: assim se destruiria um dos mais interessantes e bem frequentados gaivotais da costa portuguesa. Estão a ver o desastre?
Mais uma pergunta, já agora, e esta dirigida a quem manda, mas upa upa: para quando a criação da Reserva Natural do Gaivotal da Praia de Matosinhos? Era uma garantia, ficava o assunto resolvido.
A este santuário, estrategicamente localizado mesmo aos pés da famosa Anémona da Olá, as gaivotas acorrem aos milhares e ao cheiro. Porque a Riguinha cheira. O estuário da Riguinha e Carcavelos parece a desembocadura de um esgoto. A Riguinha tem tudo para ser um bom esgoto, mas é uma ribeira de papel passado. Quando chove, a ribeira alimenta-se das sarjetas das ruas e as gaivotas agradecem. As águas são gordurosas e amiúde recheadas, são ora pretas ora castanhas, sobretudo castanhas. E as gaivotas apreciam. E todo este património não se pode perder.
As gaivotas, que têm merda na barriga mas não na cabeça, não se acreditam que a Riguinha é uma ribeira. Acham que é um esgoto. E eu até as compreendo.

Lugares-comuns 350

                                                                                                               Foto Hernâni Von Doellinger

Francisco Otaviano 3

Recordações

Oh! se te amei! Toda a manhã da vida
Gastei-a em sonhos que de ti falavam!
Nas estrelas do céu via teu rosto,
Ouvia-te nas brisas que passavam:
Oh! se te amei! Do fundo de minh’alma
Imenso, eterno amor te consagrei...
Era um viver em cisma de futuro!
Mulher! oh! se te amei!


Quando um sorriso os lábios te roçava,
Meu Deus! que entusiasmo que sentia!
Láurea coroa de virente rama
Inglório bardo, a fronte me cingia;
À estrela alva, às nuvens do Ocidente,
Em meiga voz teu nome confiei.
Estrela e nuvens bem no seio o guardam;
Mulher! oh! se te amei!


Oh! se te amei! As lágrimas vertidas,
Alta noite por ti; atroz tortura
Do desespero d’alma, e além, no tempo,
Uma vida a sumir-se na loucura...
Nem aragem, nem sol, nem céu, nem flores,
Nem a sombra das glórias que sonhei...
Tudo desfez-se em sonhos e quimeras...

Mulher! oh! se te amei!

Francisco Otaviano 

(Francisco Otaviano nasceu no dia 26 de Junho de 1825. Morreu em 1889.)

Caminho 159

                                                                                                                Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 25 de junho de 2016

O meu Europeu é melhor que o teu 9

Pica, 6 - Fareja, 0
Fafe tem nomes que são um mimo. Uma terra que tem um lugar chamado Pica e uma freguesia chamada Fareja só pode ser uma grande terra. E Fafe é realmente. Em pleno Verão de 2014, em dia de apuramento para a Liga dos Campeões, Pica e Fareja fizeram um jogo-treino, e o resultado, sendo contundente, não significa nada por aí além, a não ser que dá para rir: Pica, 6 - Fareja, 0...
Mas é preciso que se note: para quem é de Fafe, como eu sou, Fareja e Pica são nomes absolutamente normais, que só fazem confusão ao jornalista Nuno Azinheira, que chamou Fajães a Fareja, e a uns caralhos de fora que não conseguem passar pela tabuleta da Pica sem lhe meter a cedilha.


O último terço do terreno
O último terço do terreno é o primeiro terço do terreno, segundo alguns autores. A comunidade científica ainda não chegou a um consenso. Tendo em atenção que o último (ou primeiro) terço do terreno é aquele espaço que vai desde a linha de fundo ou de baliza até à linha imaginária que fica equidistante da linha de grande área e da linha de meio campo, eu sustento, e creio que o consigo provar sem deixar margens para dúvidas, que o terço do terreno dá para os dois lados, como certas e determinadas pessoas, consoante se ataca ou se defende. Advirto, no entanto, que esta é uma opinião meramente pessoal, que não vincula o Tarrenego!, ainda sem posição oficial sobre o assunto. É o meu modesto contributo para um debate que não deve ficar entre linhas.
Por outro lado, o último terço do terreno é aquele que o defundo leva nas mãos para a cova...


Mário Wilson levava a Selecção num guardanapo
Por volta de 1980, Mário Wilson era o seleccionador nacional e também treinador do Vitória de Guimarães, por onde passava pela segunda vez, se não me engano. No Inverno, para poupar o relvado, único, do velho e feio Municipal vimaranense, o Vitória ia às quartas ou quintas-feiras treinar a Fafe, fazendo o chamado jogo-treino com os da casa. Eu trabalhava lá, na Associação Desportiva de Fafe, tratava dos papéis, de alguns inocentes papéis...
Mário Wilson é uma jóia de pessoa e foi um treinador sobretudo afectivo. Gostava de falar com os seus jogadores um a um, como em confissão mas passeando, colocando-lhes o braço paternal por cima dos ombros - vi muitas vezes.
Um dia, numa daquelas quartas ou quintas-feiras, o Senhor Wilson entrou-me no gabinete, que era por baixo das bancadas e por cima dos balneários, cumprimentou-me como se eu fosse alguém e pediu-me se podia usar o telefone para ligar à Federação. Eu teria para aí uns 21 ou 22 anos e dei-lhe autorização, armado em parvo com só naquela idade. Depois de conseguir resposta do lado de lá da linha, o Velho Capitão foi ao bolso do casacão de cabedal, rapou de um guardanapo de papel marcado com beiçadas de verde tinto, estendeu-o em cima da minha secretária, alisou-o o melhor que pôde e começou a ditar para Lisboa o que lá escrevera eventualmente ao almoço. Eram nomes, uma lista, a convocatória para a Selecção Nacional na campanha de apuramento falhado para o Europeu de 1980, em Itália. Exactamente: a Selecção de Portugal estava no guardanapo de Mário Wilson...

Lugares-comuns 349

                                                                                                                Foto Hernâni Von Doellinger

Ruy Barata 3

Helena

Da tristeza e da alegria
Somente Helena sabia,
Sabia porque sabia
do bordel à Eucaristia.
Sabia porque sabia
que a noite clareia o dia.


De tantas e tontas coisas
Sabia Helena sabia.
Regando seus muitos sonhos
penteando a maresia
lavando léguas de lodo
no limbo da poesia.


E assim costurava o caos
com a linha da fantasia
a nossa Helena dos bares
aquela que mais sabia
que sabendo se lembrava
e lembrando se esquecia.


"Antilogia", Ruy Barata

(Ruy Barata nasceu no dia 25 de Junho de 1920. Morreu em 1990.)

Caminho 158

                                                                                                                  Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 24 de junho de 2016

As minhas frases favoritas 37

Isto só lá vai à chapada!...

Lugares-(in)comuns 180

                                                                                                Foto Hernâni Von Doellinger

O meu Europeu é melhor que o teu 8

Generoso, mais rápido do que uma linha recta
A menor distância entre dois pontos é uma recta? Nem sempre. Às vezes a menor distância entre dois pontos pode ser uma curva. Aqui não se trata de ciência, é mero exercício de memória. Por exemplo: lembram-se do Generoso? Claro que não se lembram do Generoso. Mas eu explico: o Generoso era um extremo brasileiro que jogou no SC Braga bem no início da década de setenta do século passado, por alturas da segunda divisão, se não me engano. O Generoso (e decerto um nome assim nunca foi tão bem empregue), o Generoso, dizia eu, era tão rápido, corria tanto, que, quando atacava e levava um adversário à ilharga, despossuído de outros e melhores argumentos técnicos, chutava a bola para a frente, saía do relvado, contornava o defesa pela pista de cinza, e - espantem-se! - ainda chegava lá primeiro.
Para que nos entendamos, o relvado e a pista de cinza eram no Estádio 28 de Maio, em Braga. Sim, antes do 25 de Abril de 1974, o Estádio 1.º de Maio chamava-se Estádio 28 de Maio. O que só demonstra (raciocínio palerma e suinamente fascistóide) que a Outra Senhora levava 27 dias de avanço em relação a Esta Senhora e que as revoluções cometem-se para mudar os nomes das ruas, praças, pontes, estádios e outro imobiliário. Mas eu também vi o Generoso executar a sua supersónica façanha no então pelado do meu Fafe, onde o resvés com os pilares de cimento e com os tubos metálicos da vedação conferia um toque extra de emoção e perigo ao espectáculo. O Generoso, sempre na mecha e a passar calafriantes tanjas ao excelentíssimo público e ao desastre, trazia-me à cabeça o encantatório e fanhoso reclame altifalante do poço-da-morte, nos dias dos 16 de Maio e da Senhora de Antime: também ali havia "arrojo, coragem, audácia, cooommm-ple-to desprezo pela vida". E eu sempre achei que o Generoso devia jogar de capacete.


As lágrimas do adepto
O adepto. O adepto anda quatro anos a poupar para acompanhar a selecção no Europeu. Ou então assalta um banco. Acompanhar a seleccção no Europeu implica, às vezes, atravessar meio mundo e morar fora durante um mês - coisa para custar um dinheirão. O pão e água para toda a família justifica-se portanto como regime de emergência, e o assalto a bancos também. É o amor, é o país, é a selecção. Está certo.
Depois a selecção está a jogar miseravelmente e a levar três secos a dois minutos do fim e já com guia de marcha para casa. E o adepto entra numa depressão desgraçada, mãos esgadanhando a cabeça incrédula, lágrimas esborratando as pinturas de guerra, dei cabo da minha vida por esta merda, ai os meus ricos filhinhos, mais me valia morrer, uma tristeza que só vista. Exactamente. A televisão vê a tristeza do adepto - profunda, incrédula, esgadanhada e esborratada - e passa-a no ecrã gigante do estádio. Em câmara lenta e HD. As lágrimas do adepto, momento televisivo de rara beleza. O adepto vê que está a ser visto na televisão, e salta, e ri, e manda beijinhos, e faz caretas, e tira macacos do nariz, e fica tão feliz, tão feliz, tão feliz da vida, que se foda o desespero, que se foda a selecção, que se fodam os filhos, valeu bem a pena a fome que passaram durante quatro anos. Ou o assalto ao banco. Que está certo e também dá na televisão.


De volta ao football
As primeiras cadeiras que apareceram no nosso futebol foram os então chamados lugares cativos. Um luxo para uns poucos, normalmente circunscrito a uma zona reduzida da bancada central e que garantia ao associado aderente o domínio soberano sobre cerca de 40 centímetros de estádio. Aquele espaço era dele, estava numerado e devidamente identificado, era intransmissível e motivo de muita discussão e alguns cachaços por causa das ocupações selvagens.
A cadeira de plástico era paga por cada um por cima da quota normal de sócio de bancada e por isso, por uma questão de poupança, ninguém se atrevia a arrancá-la para a atirar à cabeça do árbitro. Bons tempos!
Mas os portuguesíssimos lugares cativos, assim chamados, acabaram. Agora há o Dragon Seat, o Red Pass e a Gamebox. Quê? Eu repito: o Dragon Seat, o Red Pass e a Gamebox. E isto é o quê? Manobra de marketing? Enfim a modernidade? Não, nada disso! São os nossos três grandes - FC Porto, Benfica e Sporting - a andarem às arrecuas. Até parece que tornámos ao tempo dos backs e do offside...

Ai tanta vergonhinha!...

                                                                                                                 Foto Hernâni Von Doellinger

Pedro Oom 3

As virtudes dialogais

Dentro
de mim
há uma planta
que cresce
alegremente
que diz
bom dia
quando nos amamos
ao entardecer
e boa noite
quando florimos
à alvorada
uma árvore
que não está com o tempo
este tempo
a que chamamos
nosso.

"Actuação Escrita", Pedro Oom

(Pedro Oom nasceu no dia 24 de Junho de 1926. Morreu em 1974.)

Lugares-comuns 348

                                                                                       Foto Hernâni Von Doellinger

Joaquim Manuel de Macedo 4

Mas acontecem coisas neste mundo!...
O Tenente João Moreira, o Amotinado, o companheiro ou caudatário do Marquês de Lavradio em seus passeios noturnos, era casado e tinha em sua companhia uma cunhada, Josefa, chamada em família Zezé, viúva há um ano.
A esposa do Amotinado era bonita e jovem; mas a Zezé, dois anos mais moça, mais bonita ainda.
O Tenente morava à Rua do Padre Homem da Costa, um pouco acima da dos Ouvires, e sua casa de um só pavimento tinha além da porta de entrada uma outra em curto muro contíguo, a qual só se abria para o serviço dos escravos.
Ora, no último ano do seu vice-reinado o Marquês, apanhado uma noite na Rua do Padre Homem da Costa por súbita e grossa chuva, aceitou o oferecimento do Tenente, recolheu-se à casa deste, e viu Leonor, ou Lolora, como o marido e parentes a chamavam, e a Zezé, sua irmã.
O Marquês ficou encantado, e creio que só em lembrança dos serviços que devia ao Amotinado não pensou em apaixonar-se por ambas.
Enamorado da Zezé, e castigando assim e sem idéia de castigo as vis cumplicidades do Tenente, fez chegar seus recados e proposições amorosas à linda viuvinha, conseguindo comovê-la com a ternura prestigiosa e com a sua singular beleza de Vice-Rei.
Não sei como o Amotinado descobriu o namoro e os projetos do Marquês, e pôs-se alerta para impedir que o vice-real namorado penetrasse em sua casa.
O cem vezes baixo e aviltado cúmplice de entradas noturnas em casas alheias não queria graças pesadas na sua: com outro qualquer teria logo posto fim à história, rompendo em escandaloso conflito do seu costume; com o Vice-Rei, porém, o caso era outro, e o Tenente sabia que a mais pequena cabeçada leva-lo-ia à forca ou pelo menos ao desterro, ficando não só Zezé mas também Lolora indefesas e à mercê do Marquês, e de outros depois dele.

"Memórias da Rua do Ouvidor", Joaquim Manuel de Macedo

(Joaquim Manuel de Macedo nasceu no dia 24 de Junho de 1820. Morreu em 1882.)

Caminho 157

                                                                                                                 Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 23 de junho de 2016

As minhas frases favoritas 36

Depois não digas que não te avisei...

A cidade das traseira 10

                                                                                                                  Foto Hernâni Von Doellinger

O meu Europeu é melhor que o teu 7

Para ser bom, o futebol deve ser visto na Antena 1
Comecei a ver o útimo Sporting-Benfica na cozinha, ouvindo o relato na rádio Antena 1. Estava a ser um derby de arromba, bola cá, bola lá, quase-golos uns atrás dos outros, os relatadores esganiçados com tanta emoção, faltava-lhes o ar, que jogatana, que jogatana! Fui a correr para a sala e liguei a televisão, para ver com os meus próprios olhos: o jogo era fraquinho, não havia dois passes seguidos certos, os do Benfica entregavam a bola aos do Sporting e os do Sporting, porventura por civilidade anfitriã, entregavam a bola aos do Benfica, política de boa vizinhança, ao contrário do que nos querem fazer crer. Entre estas cortesias a meio campo, e sempre e ainda no dito miolo do terreno, sarrafava-se a bom sarrafar, mas dentro do protocolo estabelecido. Que merda! Voltei, desiludido, para a cozinha, liguei outra vez o rádio: o prélio tornou a ser uma categoria, um frémito, um frenesim, só não era golo porque não calhava. Eram defesas impossíveis, eram perdidas inacreditáveis, só se jogava nas áreas. Fiquei-me portanto pelos 96.7, que até podia ter sido o resultado final, tantas as oportunidades radiofónicas, e regalei-me. Que jogaço, que jogaço! Esqueçam a televisão por cabo, que nos custa os olhos da cara e só nos dá espectáculos deprimentes. O futebol, para ser bom, deve ser visto na rádio Antena 1. É mentira, mas sabe bem.

Eu sou pela Antena 1 desde pequenino, ainda a Antena 1 se chamava Emissora Nacional e dava os resultados da 3.ª divisão e dos distritais já pela noite dentro e era uma comoção tremenda ouvir dizer Fafe, Associação Desportiva de Fafe, no Philips da mesinha de cabeceira dos meus pais. Ficávamos ali todos à espera, a família, como se estivéssemos a rezar o terço mas de boca calada, angustiados e alerta, porque aquilo era dito uma só vez, como no "Alô, Alô", e com a rapidez do "não dispensa a consulta do prospecto". Vamos supor: o jogo do Fafe tinha sido em Arcos de Valdevez, que naquela altura era muito longe e não havia telemóveis (eu sei que é difícil de acreditar); se não fosse o rádio, só saberíamos o resultado a altas horas, se tivéssemos vagar para isso, quando a excursão regressasse ao Largo, e não era certo. O resultado. Porque o vinho também é bom, mas às vezes atrapalhava as contas...


Gosto muito de todavias
Na rádio, ouvi aqui atrasado uma pequena entrevista telefónica feita ao presidente de um clube de futebol da primeira divisão. Claro que o entrevistado não era nenhum dos três cabeçudos - esses não têm telefone (por causa da polícia), só dão "grandes entrevistas" nas televisões mais ou menos nacionais, em directo e exclusivo, ou, quando lhes apetece, mandam recado pela rapaziada que mantêm nas redacções. E também não era nenhum daqueles que querem ser cabeçudos quando forem grandes. Era somente o presidente de um clube de futebol da primeira divisão.
E querem saber? Gostei do que ouvi. Em apenas três ou quatro frases telegráficas, num discurso simples e honesto, o presidente utilizou pelo menos duas vezes a conjunção adversativa (ainda se chama assim?) todavia. Ora, eu gosto muito de todavias. O facto de haver um presidente de um clube de futebol da primeira divisão que respeita o trabalho dos jornalistas e tem educação bastante para atender o telemóvel e permitir a gravação de uma conversa, nos dias que correm e por si só, é para mim uma enorme novidade, um motivo de justificado aplauso. E ainda por cima as todavias falaram-me ao coração. Este presidente, digo já, passou a merecer a minha mais sincera admiração.
Apesar de nenhuma das suas todavias estar devidamente contextualizada. Ou, como se diz agora à la française, "mesmo que" nenhuma das suas todavias estivesse devidamente contextualizada. Atirou-as ao calhas e quem quiser que fuja. Quero lá saber: o homem é do futebol, não é gramático. Podia ter dito "picaretas" e, isso sim, seria perigoso. Gosto muito de todavias, mas as todavias não são tudo.


No tempo em que os animais falavam
Houve um tempo em que os presidentes dos maiores clubes de futebol falavam com os jornalistas e até convidavam os directores dos jornais para jantar. Todos eram tratados por igual e quem tivesse unhas que tocasse viola. Mas isso foi muito, muito antigamente, no tempo em que os animais falavam e não havia telemóveis. Depois, conta-se que os presidentes dos maiores clubes resolveram dividir os jornalistas em dois grandes grupos: os que levavam recados e os que levavam pancada - e deixaram de falar aos restantes. Mais tarde, os presidentes dos maiores clubes criaram as suas próprias televisões e passaram a ser "entrevistados" pelos seus próprios jornalistas. E agora, quando se dignam descer até ao ecrã das televisões generalistas, exigem tratamento de primeiro-ministro. São outros tempos.

Caminho 156

                                                                                                                Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Piratas em Leça da Palmeira 2016

Os piratas voltam ao ataque em Leça da Palmeira. No fim-de-semana de 8 a 10 de Julho, nos arredores do Forte de Nossa Senhora das Neves ("Castelo de Leça"), recriação histórica e viagem ao tempo em que os velhos piratas - os da perna de pau, olho de vidro e cara de mau - se passeavam e montavem negócio em Matosinhos, uma fama que vem de longe. Mais informação, aqui. Programação, dentro em breve.

As minhas frases favoritas 35

O que te estimo é o que te desejo...

A cidade das traseiras 9

                                                                                         Foto Hernâni Von Doellinger

O meu Europeu é melhor que o teu 6

A bola, como uma mulher
O futebol pode ser uma coisa muito bonita. Se o pequeno astro argentino Lionel Messi estiver em campo, então é de certeza. Lembro-me de um jogo da Liga dos Campeões, há quatro anos, em que o craque do Barcelona brilhou como nunca: marcou cinco em sete, bateu recordes, mas não é a quantidade que aqui me interessa - é a qualidade. A qualidade de um jogador que descansa mais do que corre, e que não corre, desliza. Que não se esfarrapa, mas pensa. E que pensa e cria como respira. A sofreguidão é uma cena que não lhe assiste. Os seus golos são obras de arte, actos de amor.
Messi conhece como ninguém, a cada momento, o ponto G da jogada que ainda nem lhe chegou aos pés. Ele adivinha o sítio onde a bola o vai procurar. Recebe-a com um beijo, oferece-lhe flores, acaricia-a, leva-a a passear, e ela gosta, retribui os carinhos, abraça-se-lhe à chuteira num abraço só desfeito no exacto momento do remate. Digo mal. Mas qual remate? Messi não chuta, passa a bola à baliza e é golo. O pequeno Messi é um cavalheiro, um amante delicado e atencioso: trata a bola como ela merece. A bola, como uma mulher.


O Grosso da Coluna e o Maçico Central
A diferença entre o Grosso da Coluna e o Maciço Central pode resumir-se-se assim: o primeiro é corredor de bicicletas e o segundo joga no eixo da defesa, como agora se diz. E o que têm em comum? Fisicamente falando, pertencem ambos à família dos Armários.


O Caralho é o número 10 (ou Cada um tem as epifanias que merece)
Uma vez eu fui à bola e tive uma revelação que até hoje. Uma epifania, como agora se diz para evitar confusões com a velha química fotográfica. Eram outros tempos, sobras de vacas gordas que ainda me davam para subir até à prazenteira companhia e insubstituível comida do Sr. Vilaça, no Conselheiro, em Paredes de Coura. Mas o jogo: no campo à borda da estrada que desce para Ponte de Lima, era um Castanheira-Paçô, prélio que eu prognosticara sem história, coisa para zero-zero ou menos, mas estava esfericamente enganado. Foram três secos em dia de chuva, frio e nevoeiro. Nevoeiríssimo. Nem um palmo eu via à frente do nariz, literalmente, e peço que, por favor, não se escandalizem com tanta literalidade: com uma mão a segurar o chuço e a outra enfiada no bolso das calças, a gozar o quentinho da ferramenta, não tinha um terceiro palmo à mão, só mesmo se pedisse um palmo emprestado ao parceiro do lado, e eu não estava para aí virado. Portanto, não via um palmo à frente do nariz, que fique assente. O nevoeiro, nevoeiríssimo, era tanto que às vezes, junto à outra baliza, eu seja ceguinho se não era capaz de jurar que os atletas de ambas as equipas estavam a jogar em braille. Ao árbitro já não chegava essa coisa nova que é a sinalética, apitava de megafone, marcava faltas por sms, e fosse o que Deus quisesse. E eu sem saber se o bloco era baixo e se a pressão era alta, matérias que me interessam sobremaneira. E o último terço do terreno, onde estaria realmente o último terço do terreno?
Lá no alto da serra, o tecto de nevoeiro era tão denso, quase sólido, que aquilo já não era um campo de futebol, parecia mais um pavilhão gimnodesportivo, e eu ali dentro, compactado, com falta de ar, estou aqui estou a ligar para o 112. E cá está: como, ainda por cima, éramos apenas 19 pessoas e quatro gê-nê-erres a ouver o jogo, não se via mas ouvia-se tudo o que se passava dentro das quatro linhas. Foi assim que de repente, entra o primeiro golo, entra o segundo, as minhas enregeladas porém atentíssimas orelhas começaram a captar: "Vai, Caralho!", "Sobe, Caralho!", "Entra, Caralho!", "Sai, Caralho!", "Dá-lhe, Caralho!", "Força, Caralho!"... E eu cá para os meus botões, mais admirado era impossível: - Ai que caralho, queres tu ver que o Caralho joga no Castanheira? Mas quem caralho será?
Estava, é preciso que se diga, admirado mas também intrigado, consumição a dobrar. A minha sorte foi que, aproveitando um bocanho, lá acabou por entrar o terceiro dos da casa, marcado pelo 10, imediatamente abraçado pela sua equipa em peso, a aberta deu para ver. "Golo, Caralho!", "Boa, Caralho!", "É assim mesmo, Caralho!", "És o maior, Caralho!", gritavam-lhe os eufóricos colegas, pendurando-se-lhe no pescoço. Com o árbitro a dizer que eram que horas e a festa a terminar, como manda a tradição, com calduços e palmadinhas no rabo, embora toda a gente saiba que não há gays no futebol, eu percebi finalmente: o número 10 é que é o Caralho.

Lugares-(in)comuns 179

                                                                                       Foto Hernâni Von Doellinger

Antonio Fernández Pérez

Aquela tarde, ben a meu pesar, vinme obrigado a iludir a reportaxe de rigor. O espacioso salón do Círculo Mercantil estaba ateigado de xente cando eu cheguei, trinta minutos despois da hora estipulada. A culpa foi daquel maldito taxi, que me deixou a pé no medio do camiño.
Xa no vestíbulo de vistosos mármores, um bedel uniformado preguntou que desexaba.
- Falar co presidente da Comisión - respondinlle.
- De parte de quen?
- De Ramón Cudeiro.
Entón o home fixo unha venia de cortesía. Tal vez pensou que se estaba vendo de frente co autor premiado, pois a verdade é que eu ía "da súa parte"...

"Terra Coutada", Antonio Fernández Pérez 

(Antonio Fernández Pérez nasceu no dia 22 de Junho de 1909. Morreu em 1999.)

Caminho 155

                                                                                                                Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 21 de junho de 2016

E é só o primeiro dia...

Um destes dias aparece aí o Verão, esse inconsequente espalha-brasas. Contamos com ele cá em casa na próxima terça-feira, ainda a tempo do São João, e espero que venha de maiúscula como lhe fica bem. Mas com o Verão nunca se sabe - quero dizer, às vezes diz que vem mas não vem, ou chega só quando lhe apetece...
O Verão dá-me cabo da cabeça, perplexa-me. Enche-me o areal ali em baixo com milhares e milhares de pessoas que não têm dinheiro para alugar meia hora numa máquina de assar frangos, e portanto vêm para a praia. Atenção: eu até gosto de praia, nem sequer me imagino agora a viver sem ter o mar debaixo de olho, e à praia passeio-a todas as manhãs, só eu e ela, de braço dado, as ondas a desmaiarem-me aos pés, o silêncio (aquela espécie de silêncio) a lavar-me a alma. Isto é - eu namoro a praia, mas não a "faço".
Os que "fazem praia" é que me espantam. Na fornada das duas da tarde, espreito da minha varanda e não há maneira de conseguir compreender o que vejo no meu quintal. O que estão a fazer ali aqueles milhares de pessoas quase nuas? Foram obrigadas? É um castigo? Promessa? Vieram de livre vontade? Porquê? E porque trouxeram as crianças e os velhos? Palavra de honra, não percebo, não percebo, não percebo. Se ao menos houvesse a sombra de uma árvore, a frescura da erva verde, um regato cristalino e gelado onde demolhar os pés e meia dúzia de garrafas de vinho, ainda vá que não vá. Mas não, é só areia, areia e mais areia, areia de mais para a minha camioneta.
Areia a escaldar e a voar, um sol a pique e impiedoso, o ar parado, pesado.
Sua-se em bica, sufoca-se, leva-se com boladas no nariz e nos tomates, a pele derrete e dói, a cabeça estala, a areia cega, pica, mete-se nos dentes, incomoda o rego do cu. E aquela gente parece que gosta, guincha de prazer. Gente esquisita. O que a praia lhes faz...
Desisto. Não entendo. Mas talvez Sacher-Masoch explique.

(Com o título de "O Verão da minha perplexidade", escrevi e publiquei este texto fará amanhã oito dias. Pois, meu dito, meu feito: o Verão apresentou-se hoje ao serviço, e olhem-me lá para fora! Sinceramente, é um fenómeno que não consigo abranger. Então este povo não estaria muito melhor numa sombrinha, valha-me Deus?!...)

                                                                                                                  Foto Hernâni Von Doellinger

Mário Wilson tinha a Selecção num guardanapo

Por volta de 1980, Mário Wilson era o seleccionador nacional e também treinador do Vitória de Guimarães, por onde passava pela segunda vez, se não me engano. No Inverno, para poupar o relvado, único, do velho e feio Municipal vimaranense, o Vitória ia às quartas ou quintas-feiras treinar a Fafe, fazendo o chamado jogo-treino com os da casa. Eu trabalhava lá, na Associação Desportiva de Fafe, tratava dos papéis, de alguns inocentes papéis...
Mário Wilson é uma jóia de pessoa e foi um treinador sobretudo afectivo. Gostava de falar com os seus jogadores um a um, como em confissão mas passeando, colocando-lhes o braço paternal por cima dos ombros - vi muitas vezes.
Um dia, numa daquelas quartas ou quintas-feiras, o Senhor Wilson entrou-me no gabinete, que era por baixo das bancadas e por cima dos balneários, cumprimentou-me como se eu fosse alguém e pediu-me se podia usar o telefone para ligar à Federação. Eu teria para aí uns 21 ou 22 anos e dei-lhe autorização, armado em parvo com só naquela idade. Depois de conseguir resposta do lado de lá da linha, o Velho Capitão foi ao bolso do casacão de cabedal, rapou de um guardanapo de papel marcado com beiçadas de verde tinto, estendeu-o em cima da minha secretária, alisou-o o melhor que pôde e começou a ditar para Lisboa o que lá escrevera eventualmente ao almoço. Eram nomes, uma lista, a convocatória para a Selecção Nacional na campanha de apuramento falhado para o Europeu de 1980, em Itália. Exactamente: a Selecção de Portugal estava no guardanapo de Mário Wilson...

Revista Alfa, número oito


A mais recente edição da revista Alfa, dedicada às "Dinâmicas de grupo", já está disponível online. Pode ser lida aqui. Sobre o Club Alfa, toda a informação aqui.

O meu Europeu é melhor que o teu 5

O desporto é bom é com gajas. Gajas boas...
Não sei quem começou, mas foi no estrangeiro. O desporto na televisão passou a ser sobretudo bancadas. Antes, durante e depois. O entretanto do campo é agora apenas uma obrigação publicitária, um bocejo de todo o tamanho. As câmaras procuram é gajas de arrebita. Gajas boas, finas e bonitas, se possível com três quartos de mamas à mostra, e eu gosto. Mas... se de repente as gajas boas, finas e bonitas metem o dedo no nariz e vão comer o carranho de há três dias, a câmara foge a sete pés que não tem, porque gajas boas, finas e bonitas não comem carranhos. São as ordens. Comem pistácios homologados pela FIFA e pela UEFA.
Pago um dinheirão pela minha televisão. Rima e é verdade. Não vejo nada, mas gosto de passar os olhos por tudo. E lá estão as gajas boas, finas e bonitas. Nas bancadas. Nas bancadas do ténis que é bem, do basquetebol americano, do voleibol português com side-out, do hóquei em patins de trazer por casa, do andebol, evidentemente do futebol, do pingue-pongue, do hipismo, do motociclismo, da Fórmula 1, da Fórmula 2, da Fórmula 3, da fórmula mágica e das fórmulas todas. Também do bólingue e dos dardos, simpáticas modalidades que, para ser correcto, ainda andam à procura de gajas boas, finas e bonitas. Nas bancadas.


Nelo Barros
Tive a sorte de conhecer Nelo Barros. Manuel Coelho de Barros (1917-2007) foi um grande treinador de futebol e um mestre de treinadores de futebol que nunca fez primeiras páginas de jornais porque sempre se recusou a deixar o emprego no escritório da que era então a maior fábrica de Fafe, e umas das maiores do País, a troco de trabalho a tempo inteiro numa equipa da 1.ª divisão. O Nelinho era assim.
Pessoa excelentíssima, homem distinto, culto, Nelo Barros era reconhecidamente um catedrático da táctica, sabia muito de bola e dava gosto ouvi-lo falar de futebol. Ele entusiasmava-se e entusiasmava. O futebol de Nelo Barros tinha pessoas e histórias dentro. O futebol contado por Nelo Barros era simples, percebia-se à primeira, batia certo, era lindo.
Uma noite, no velho salão dos Bombeiros, o treinador encantou uma plateia à pinha que o foi ouvir falar de desporto e de futebol, de jogadores e de jogos, de treinadores e de tácticas, como nunca se tinha ouvido falar por aquelas bandas. O Nelinho falou como de costume, sem tabus, sem truques, sem arcas encouradas, sem grandes teorias, sem peneiras. Até eu, que era um rapazola, entendi tudo. E fiquei a gostar ainda mais de futebol.
Perguntaram-lhe o que é que era preciso para se ser um bom treinador. Nelo Barros respondeu assim, que esta cá me ficou: "Não há bons treinadores. Os jogadores é que fazem os bons treinadores". E depois desenvolveu, mas nem era preciso.
Eu gostava tanto de ouvir Nelo Barros, que ia assistir a todos os treinos, que eram sempre ao fim da tarde, por causa do tal emprego do treinador na fábrica. Uma vez, o jogo em preparação era contra o Riopele. E digo contra de propósito, porque aquele era um tempo de rivalidades à moda antiga, dentro e fora do campo, acabando quase sempre tudo à trolha.
Mas, voltando ao treino, o Nelinho reuniu os jogadores à sua volta e deu a táctica. E eu por perto, de radar ligado. Fiquei deslumbrado: eram indicações precisas para cada um dos jogadores, para o funcionamento da defesa, para o desempenho do meio-campo, para o trabalho dos avançados, para as movimentações da equipa como um todo, até o Berto Magalhães (um suplente muito fraquinho, mas com um pulmão se faz favor) ia jogar como médio vadio para secar os criativos riopelenses. Tudo encaixava, tudo fazia sentido. E tudo dito com uma convicção, que no domingo só podia dar certo.
Mas não deu. Do outro lado estava uma equipa poderosíssima (se a memória não me atraiçoa, lá jogariam, por essa altura, o Piruta, o Vital, o Barros, o Albano, o João, o Luís Pereira), treinada por outro que a sabia toda: Ferreirinha. Saímos de Pousada de Saramago vergados a uma pesada derrota, já não sei por quantos, mas eu não perdi a fé no Nelo Barros. Pelo contrário. Na humilhação da goleada, aprendi a beleza original do futebol, tal como ele o ensinava: onze contra onze e uma bola que é redonda. O resto é treta.

Hoje, uma nova raça de colunistas, comentadores, ex-treinadores-comentadores e ex-comentadores-treinadores quer fazer-nos acreditar que o futebol é praticamente uma ciência oculta, só percebida por uns poucos predestinados que, modéstia à parte, são eles próprios. E inventam palavras e expressões para complicar o que é simples. E já não há bola nem futebol. Eles, que sabem inglês, "inventaram" o jogo.
Aqui atrasado, Vítor Pereira, então treinador do FC Porto, cansado de que lhe chamassem mosca-morta e de que pusessem em causa as suas capacidades, saiu da casca e disse: "Conheço o jogo profundamente, conheço os detalhes do jogo, conheço os pormenores, discuto os pormenores seja com quem for, tanto em termos de operacionalização e planificação do treino como de leitura do próprio jogo". Pois, parabéns à prima.
E depois apareceu Jorge Jesus a dizer que "os treinadores portugueses são os melhores do mercado". Que "estão à frente em termos de metodologia" e que "são os melhores do mundo". Dando o desconto que se impõe, devido ao conhecido umbiguismo de que padece o actual treinador do Sporting, percebemos logo que o que ele queria realmente dizer era "eu sou o melhor do mundo". Mas, ainda assim, parece-me que subsiste aqui uma pontinha de exagero.

Por estas e por outras, que saudades eu tenho de ouvir o Nelinho a falar de bola. De bola simplesmente.