quarta-feira, 25 de maio de 2016

Calvário, jardim de memória e saudades

Foto Hernâni Von Doellinger

O Jardim do Calvário, em Fafe, vai encher-se de risos e sorrisos nos primeiros quatro dias do próximo mês de Junho. É bom. É o IV Encontro de Palhaços do Mundo e eu gostava tanto de estar lá, não do lado cómodo do público, mas no centro das atenções, no lado cómico, de nariz vermelho, cara pintada e sapatos de metro, a inventar alegria para os outros. E para mim. Sim, alegria para mim. Porque eu sempre quis ser palhaço. Melhor dizendo: quando eu era pequeno, primeiro queria ser grande. E quando fosse grande queria ser palhaço, maquinista de comboio, famoso, padre, polícia à paisana, pianista, advogado, jornalista, actor, bombeiro, jogador de futebol, tarzan, presidente da república, terrorista, papa, escritor, herói, cantor, ciclista, santo e piloto de avião de guerra. Já há muito que sou grande e, francamente, sou tarzan e é um pau. Sou tarzan como a maioria dos portugueses: estamos de tanga e isso é indesmentível, somos portanto tarzões.
Mas palhaço é que era! Alguns amigos, lisonjeiros, dizem-me que eu às vezes até sou um bocado palhaço. Por outro lado, alguns filhos da mãe que não me gramam acusam-me de eu às vezes ser um bocado palhaço. Palavra de honra, às vezes e um bocado não me chega: eu queria ser palhaço, mas palhaço completamente.

E não vejo melhor sítio para ser palhaço do que no meu Jardim do Calvário. Com efeito, foi ali que me iniciei no mundo do espectáculo, evidentemente como espectador, com lugar cativo no serão das inesquecíveis Festas da Vila. Ano após ano, antes da marcha e do fogo, passaram-me pelas mãos a Senhora Dona Amália, a Hermínia Silva - que, para além do indispensável Pacheco, trazia atrás o filho, o tenor Mário Silva -, o Rodrigo, a Tonicha, o José Cid, o Paco Bandeira, a Dina, os putos do Mini Pop que tinham ido ao Festival da Canção e depois viriam a ser os Jafumega, o Hugo Maia de Loureiro que era cinturão negro e campeão de judo e ofereceu no focinho aos assobios de uns tantos por causa de um playback mal explicado, o Nicolau Breyner e o Herman José que andavam a passear pelo País a rábula do "Senhor Contente, Senhor Feliz", eventualmente a Lenita Gentil, a Florência, o Armando Gama e o Marco Paulo, e o mais certo é ter levado também com o Nelo Silva e com os Broa de Mel, com o Manuel Morais e com o "Cantinflas Português" que era uma coisa que só vista...
Estão a ver, portanto, o meu currículo. Eu e o Jardim do Calvário. Eu entrava à sorrelfa, todos os anos variando de expediente, porque os espectáculos eram a pagar, tinham plateia para a burguesia local, comerciantes e pequenos industriais, respectivas matronas e extremosa prole, que se acadeiravam no espaço de cimento aparentemente afectado por um cataclismo de filme e pomposamento chamado de "rinque de patinagem", os mais ricos dos mais ricos nas filas da frente, e à volta da vedação, de pé, apertadinhos e aos apalpões, era a geral, éramos nós, pessoal do rés-do-chão mas os que batíamos mais palmas quando tínhamos as mãos de vago.
Se não estou em erro, terá sido ali mesmo que começou essa tradição tão festiva e tão fafense do "cuelho", também chamado de empernanço ou, cientificamente falando, "estou a ver passar os ciclistas"...

No Jardim do Calvário iniciei-me também nos fumos. Pelos nove-dez anos, ia fumar para as escadas do inamovível portão das traseiras, o sítio de Fafe onde se faziam as coisas feias. O Bílio aparecia com meio maço de Definitivos, que ali queimávamos num instante, antes que alguém nos visse e fosse contar à minha mãe. Depois eu ia-me confessar. Porque Deus vê tudo e fumar era um pecado muito grande, um dos maiores logo a seguir à punheta. Não fiquei com o vício. Do cigarro, quero dizer.
Pelos dezoito-dezanove, já nas escadas da frente, lá no alto, fui apresentado à liamba, que tinha vindo de Angola com uma mão à frente e outra atrás e era muito fixe. Nunca percebi a moca dos outros, sempre pensei que estavam apenas a armar-se, porque a mim a coisa não fazia absolutamente nada, tirando os engasgos. E também não fiquei freguês.
Ao longo dos últimos anos, sempre que pude, voltei ao Jardim, com amigos, para ouvir os concertos da Banda de Revelhe (era o sítio certo, valha-me Deus!), ou apenas, e dizer aqui apenas é uma rematada tolice, para, sozinho, envergonhadamente comovido, apaziguar as saudades. Ouço a "Aida" de Verdi enquanto escrevo isto. "O patria mia!" é onde vai o disco nestas últimas linhas, e nem de propósito. Tormou-se-me a comoção: vieram-me saudades do palhaço que eu queria ser.

P.S. - Aos fafenses mais novos: o lago do Jardim do Calvário, para além de cisnes ou pelo menos patos, já teve barcos ou pelo menos barco. Houve uma altura em que tinha também crocodilos. Os crocodilos faziam um barulho medonho à noite e não deixavam descansar o Mecas, que morava ali ao lado, em casa do padrinho, se bem me lembro. O Mecas ia depois para a fábrica e, embora fosse muito trabalhador, passava todo o dia a dormir exactamente por causa dos crocodilos - era o que ele explicava aos chefes e patrões, quando o apanhavam. Perguntem aos mais antigos, a ver se eu estou a mentir...

5 comentários:

  1. e, pelo caminho, assobiava às pombas.

    j.

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    1. Eram crododilos mansos, caro António Daniel. Mansos e muito bem alimentados, porém barulhentos. Mas já que fala em comer: sim, também iam uns parzinhos para o Jardim fazer "pequenas refeições"...
      Abraço.

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  3. "porque os espectáculos eram a pagar," a tradição mantém-se para quem quer ir ver os palhaços.

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    1. Reparei nesse pormenor, caro Ivo. Será talvez sinal de que os tempos afinal não mudaram assim tanto. Porque a máxima é muito antiga: não há dinheiro, não há palhaços...

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