quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

António Feliciano de Castilho 3

Cântico da noite

Sumiu-se o sol esplêndido
Nas vagas rumorosas!
Em trevas o crepúsculo
Foi desfolhando as rosas!
Pela ampla terra alarga-se
Calada solidão!
Parece o mundo um túmulo
Sob estrelado manto!
Alabastrina lâmpada,
Lá sobe a lua! Entanto
Gemidos de aves lúgubres
Soando a espaços vão!


Hora dos melancólicos,
Saudosos devaneios!
Hora que aos gostos íntimos
Abres os castos seios!
Infunde em nossos ânimos
Inspiração da fé!
De noite, se um revérbero
De Deus nos alumia,
Destila-se de lágrimas
A prece, a profecia!
A alma elevada em êxtase
Terrena já não é!


Antes que o sono tácito
Olhos nos cerre, e os sonhos
Nos tomem no seu vórtice,
Já rindo, e já medonhos,
Hora dos céus, conserva-me
No extinto e no porvir.
Onde os que amei? sumiram-se.
Onde o que eu fui? deixou-me.
Deles, só vãs memórias;
De mim, só resta um nome.
No abismo do pretérito
Desfez-se choro e rir.


Desfez-se! e quantas lágrimas
Brotaram de alegrias!

Desfez-se! e quantos júbilos
Nasceram de agonias!
Teu curso, ó Providência,
Quem o sondou jamais?
Que horas desta hora tácita
Me irão desabrochando?
Quantos nos fez cadáveres
Num leito o sono brando!
Vir-me-ão com a aurora próxima
As saudações? os ais?


Se o penso, tremo, aterro-me.
Porém, se ao Pai Supremo
Remonto o meu espírito,
Exulto; já não tremo,
A alma lhe dou; reclino-me
No sono sem pavor.

Chama-me? ascendo à pátria;
Poupa-me? aspiro a ela.
Servir-te! ou ver-te, e amarmo-nos!...
Que sorte, ó Deus, tão bela!
Vem!, cerra as minhas pálpebras,
Virgem do casto amor!


António Feliciano de Castilho

(António Feliciano de Castilho nasceu no dia 28 de Janeiro de 1800. Morreu em 1875.)

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