sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Ramalho Ortigão 2

Senão quando a corrente do ar cortado pela locomotiva levou-me da cabeça o meu chapéu. 
Preciso abrir para este objecto perdido um parêntese, de cuja substância Deus me livre que se soubesse! Tinha sido feito em Paris por Pinaud & Amour esse bonito chapéu tão flexível que se meteria dentro de um sobrescrito! Era de casimira azul como a minha jaqueta de viagem, forrado de azul-claro com debrum pespontado de seda preta. O próprio Amour me tinha dito ao vender-mo por vinte francos - Cela vous coiffe à merveille - e eu tinha tido a criminosa fraqueza de o acreditar! Aquele chapéu não era para mim somente um chapéu, era um elmo e um arnês. Não me considerava simplesmente coberto quando o punha, considerava-me também armado. Queres que te confesse a verdade? Eu não me teria nunca atrevido a apertar os dedos da minha alemã, nem a beijar-lhe apaixonadamente a luva, se o não trouxesse na cabeça, e era realmente muito mais com o talento dos srs. Pinaud & Arnour, do que com o meu próprio, que eu contava para me fazer passar junto dela por um homem de espírito! 
Os cabelos despenteados pelo vento tinham-me caído para cima dos olhos; compreendi que estava ridículo, não podendo esconder este ar sumamente tolo de todo o homem a quem de repente desaparece o chapéu na asa de um tufão. 
Ela ria às gargalhadas, as quais me caíam na cabeça... na cabeça não - pelas costas abaixo! - como torrentes de água nevada.

"Ele e Ela", "Histórias Cor-de-Rosa", Ramalho Ortigão 

(Ramalho Ortigão nasceu no dia 24 de Outubro de 1836. Morreu em 1915.)

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