segunda-feira, 10 de março de 2014

Quando me mandaram entrevistar o morto

Eu trabalhava num jornal que tinha uma revista de fim-de-semana muito dada àqueles rankings da treta que só servem para meter as fotografias dos "famosos" no júri de faz de conta. Eu trabalhava no Porto e o jornal era chefiado a partir de Lisboa. Uma vez o assunto devia ser música, já não me lembro, e pedi a ajuda do Luís Filipe Barros. "Luís Filipe quê?..." - disse o meu chefe, especialista em Big Brother. "Quem é esse gajo? Não arranjas ninguém conhecido?..."
Passou-se o mesmo com o Tozé Brito, que o meu chefe (outro) também não fazia ideia de quem fosse: "Esse tipo jogou onde? O que é que ele percebe de música?...", atirou-me, com aquele risinho telefónico e condescendente tão próprio dos sábios de Lisboa. Pouco tempo depois (e nem digo que tenha sido por causa de eu lhe ter sacudido o pó), Tozé Brito foi para jurado num programa de televisão e o jornal onde eu trabalhava nunca mais lhe largou a braguilha. Até fechar. O jornal.
Outra vez havia cá em cima uma iniciativa qualquer relacionada com cartoons e política, algo do género. Eu tentava convencer Lisboa para o interesse da coisa e agarrei-me a este argumento de peso: a obra do grande Sam era o destaque do evento. "Qual Sam?", inquiriu o chefe de serviço, com o fastio de quem tem mais que fazer do que estar outra vez a ensinar-me o que é notícia e o que não é notícia. "Então, pá, o Sam, o famoso cartoonista, o Sam do Guarda Ricardo, pá, estás farto de saber, não estás?, o Sam...", respondi-lhe eu, já mais perto do que longe de o mandar à merda.
A palavra "famoso" fazia milagres naquele jornal. "Ok. Vai lá então e aproveita para entrevistar o gajo, o Sam", decidiu finalmente o chefe. Estive para lhe dizer que sim, que era o que eles gostavam de ouvir, mas resolvi contar-lhe a verdade: "Esta se calhar é mesmo impossível, pá. O Sam já morreu há uns anitos. Mas a culpa não foi da redacção do Porto, palavra de honra".
Aquela rapaziada era assim, profissionais formidavelmente informados. Estão hoje todos muito bem colocados nas redacções da capital. São chefes e fazem por isso. Deus os abençoe e lhes dê muito dinheiro.

(Texto escrito e publicado no dia 21 de Fevereiro de 2012. O jornal 24horas nasceu em 1998 e morreu oficialmente em 2010, um ano depois de os seus alegados responsáveis terem liquidado a sangue frio a Redacção do Porto. Podem limpar as mãos à parede. Mas tinha piada o pasquim, que até chegou a ser bem feito, e é a bíblia do jornalismo que hoje se faz em Portugal.)

12 comentários:

  1. Viva meu Velho,

    Cá para mim, não seria mau (embora eles - esses génios - não mereçam figurar neste espaço) pôr o nome aos bois ou boys.

    Abraço.

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    1. Devo muito a essa rapaziada, caro Orlando Castro. Fazia-me rir, alegrava-me a viva...
      Obrigado pela visita e pelo comentário.

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  2. Se Nane, para mim, a melhor de todas, foi quando o mandaram telefonar ao Papa (não conseguiste porque és, obviamente, uma nulidade. Se me tivesses pedido o número, eu dava-to). E a brilhante cacha da morte do Carlos Tê, felizmente ainda hoje vivinho da Silva? São tantas as estórias, que estaríamos aqui dias a fio para as contar todas.
    Eles é que eram (e são, pelos lugares que ocupam) os bons! Nós éramos apenas os nabos, uma espécie de estagiários (até nos verem in loco e perceberem que tínhamos, em especial o se Nane, quase mais anos de jornalismo do que alguns deles de vida..)
    Peço desculpa por me meter na conversa do Orlando Castro, mas acho que ter de escrever os nomes dos iluminados em causa dá cá uma volta na tripa... Só de pensar neles, já dá.
    Abraço grande,
    P.

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    1. De facto também estou com as tripas às voltas. Se calhar é mesmo melhor deixá-los no seu mundo de néscios bem cunhados.

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    2. Caro P.,
      A do Papa sai um destes dias. Merece tratamento à parte. Quanto às tripas, acabei agora mesmo de as cozinhar, com a orelheirinha da ordem. É um panelão à moda antiga e só te digo que estão uma coisa do outro mundo. E ainda estão a tomar-se! Depois vamos comê-las a casa dos meus sogros.
      E (deixa-me aproveitar), sim, foi um fim-de-semana em cheio. Desculpa, mas só há pouco é que vi a tua mensagem.
      Obrigado pela visita e pelo comentário. Bom Carnaval! Grande abraço,
      h.

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  3. Um desses iluminados que foi contratado como director para acabar com o teu jornal, escreve hoje uma cronica no DN(actual tacho)carpindo lagrimas de crocodilo pelos desempregados.
    Abraço

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  4. "Aquela rapaziada era assim, profissionais bem informados. Estão hoje todos muito bem colocados nas redacções da capital. São chefes e fazem por isso. Deus os abençoe e lhes dê muito dinheiro!" E pegando nas tuas palavras direi que estão a destruir o povo... com falta de cultura!!!! O mundo está para os AFILHADOS!

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    1. Bem-vindo, Paulo! Obrigado pela visita e pelo comentário. Aparece mais vezes!

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  5. Hernâni
    Fazes muito bem em não chamar os BOYS pelos nomes!
    Também eu tive chefes de plástico em Lisboa e no Porto, mas com esses não perco o meu precioso tempo, prefiro ignorálos. Tive também chefes muito bons, GENTO DO ALTO, esses eu não esquecerei nunca, também não refiro os seus nomes aqui, os que me leem sabem quem são!
    Hernâni, esta tua postagem leva-me a fazer-te um desafio; com tantas histórias para contar, porque não marcamos um encontro entre os vários comentadores do TARRENEGO? Assim um espécie de Tertúluia Jornalística. Era fácil, barato e poderia ter piada.
    Pensa nisso, ok ?
    Gaspar de Jesus

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    1. Lá piada havia de ter. Obrigado, caro Gaspar de Jesus, pela visita e pelo comentário.

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