quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

João Cabral de Melo Neto

A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.


O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.


Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.


Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.


Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos povos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.


Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.


"O Cão Sem Plumas", João Cabral de Melo Neto

(João Cabral de Melo Neto nasceu no dia 9 de Janeiro de 1920. Morreu em 1999.)

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