sábado, 1 de fevereiro de 2014

Fernando Assis Pacheco

De como fiz a minha iniciação desportiva, hesitando entre a arte de guarda-redes e a de pedróbolo da quinta do Lopes

O Eusébio marca livres de 30 metros, o Artur Jorge chuta em moinho, o Dinis faz fintas à bandeirola de canto, mas eu fui o maior craque da Rua Guerra Junqueiro e está para nascer um sucessor digno desse título.
A Rua Guerra Junqueira continua no mesmo sítio, isto é, em Coimbra, capital da Beira Litoral, e creio que já de nascença tinha o quintal do Luís Marques (12x2,5m) com a parede do prédio à esquerda de quem desce as escadas e um muro infelizmente não muito alto à direita, que era por onde galgávamos para o quintal do Lopes à procura da chincha. Uma tarde, estava o craque nos cinco anos, ouviu-se a frase entre todas decisiva:
"E se o miúdo jogasse à baliza?"


Vi-me subitamente presenteado com um boné e dois lenços de assoar para as joelheiras. A maltózia era mais velha, nove, dez anos, e num relance percebi que o meu futuro desportivo, assaz brilhante nas épocas seguintes, poderia nem sequer começar. Ora como isto de futebóis mais vale um mergulho para o fotógrafo do que dois meses no banco dos suplentes, o craque enfiou o boné bem enfiado na tola, arreganhou o pior dos sorrisos (grr!) e dispôs-se a gravar o nome completo sobre o cimento do quintal. É claro que a minha equipa ganhou: nem seria nunca de outro modo, pois logo à pri­meira investida do Tó Mané Magalhães esfola gatos mata cães fui­-me a ele, encostei delicadamente a biqueira do sapato esquerdo ao tornozelo do artista, fiz força (uma força "do catarino", como então se dizia) e apliquei-lhe o acelerador com algumas ganas e sobeja intenção de brilhar. O Tó Mané desandou para as escadas agar­rado ao tornozelo. Perguntaram-lhe se queria que trouxessem a bilha de água. 
"Quero, pois", urrou. "Quero a bilha e quero um calhau pra partir os focinhos a esse gajo do cento e dezoito!"
Nessa tarde, afora o incidente relatado supra, correu tudo à me­dida dos meus mais veementes desejos: cinco defesas em reboleta, três por cima das sardinheiras, enfim um penáltie socado por cima do muro que ainda estou a ver o Luís Marques muito chagado ex­plicando-me assim:
"Vais lá tu que é pr'aprenderes a não armar ao Barrigana, òviste?" Fui, sim senhor, e deliciado. Daí a pouco terminava o prélio: vi­tória dos Portas Pares, um convite ad aeternum para aparecer sempre que entendesse. Durante mais de sete anos não faltei ao compro­misso.
Como depois da jogatana era preciso secar as camisas, Luís Marques e seus muchachos costumavam trespassar-se até ao quin­tal do Lopes e entreter os derradeiros ócios antes da sopa da noite com um exercício de arremesso. Destarte me tornei o mais artilheiro dos pedróbolos da rua, com um saldo de catorze gatos só na semana de estreia. Quando ouço contar que o Zsivotzky lança o martelo a - setenta metros e tal, batendo com isso os máximos reconhecidos e a reconhecer, debruço-me na janela da Travessa do Patrocínio e,

deitando a bia fora, ponho-me a pensar em quanto é cruel o mundo dos homens. Um recordista mundial que não dá nem uma calhoada num gato - então isto chama-se pontaria?

"Memórias de Um Craque", Fernando Assis Pacheco

(Fernando Assis Pacheco nasceu no dia 1 de Fevereiro de 1937. Morreu em 1995.)

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