quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Os pobres

Foto Hernâni Von Doellinger

Ser pobre é fodido. Mas, para quem não sabe o que é a pobreza, "pobre" é apenas título de jornal, cinco caracteres sem pessoas dentro. Pessoas de pele e osso. O Público diz que os "pobres passam a ter acesso a refeições take away em 950 cantinas em todo o país". Vejam bem o que se escreve em Portugal e já vamos no século vinte e um, o tal que nem deveria existir se houvesse respeito pelas profecias: os "pobres" têm outra vez direito à senhazinha da sopa dos ditos. Se os pobres morrerem de fome é porque não deram o nome. Ou então porque não sabem o que quer dizer take away. Problema deles. Os pobres não são leitores do Público.

Havia o clero, havia a nobreza e havia o povo. E isto estava muito bem percebido. Depois apareceu a burguesia, que meteu um bocado de nojo, amantizando-se com o clero, com a nobreza e com o povo, consoante, porque a burguesia é muito dada a certas e determinadas promiscuidades. E a seguir, mas isto já foi um a seguir que demorou muito tempo e ainda está a doer, veio o proletariado, lá do fundo do fundo do clero, da nobreza, do povo e da burguesia que estava distraída a chá e torradas. E do sarro dos pés do proletariado, tipo cogumelos, renasceram os pobres, que aqui atrasado eram uns desgraçados que em dias certos batiam à porta da nossa casa, em Fafe, a pedirem "uma esmolinha, por alma de quem lá tem". Porque nós éramos pobres, mas menos pobres do que eles.
O Público titula que "pobres passam a ter acesso a refeições take away em 950 cantinas em todo o país". Os pobres. Nós. Os que, hoje em dia, não somos nem clero, nem nobreza, nem burguesia, nem povo, nem sequer proletariado, nem jornalistas. Nem somos os pobres que damos esmola. Somos os pobres que a pedimos. Somos outra vez os pobres de papel passado e, isto sim é notícia, vítimas do insulto patarata que também já esbordou da política para o alegado jornalismo.
Eu sou pobre e estou aqui, deste lado. A rapaziada que escreve as tolices que a mandam escrever e os tituladores que acham que são mais finos do que os outros, essa é gente que não sabe de que lado está. Um destes dias cortam-lhes as respectivas comissões de serviço de três meses, escravidão, recibo verde, pouca vergonha e pouca conversa. Talvez então a rapaziada e os tituladores pataratas percebam que afinal somos todos do mesmo: portugueses, pobres, na fila da sopa, apesar de uma vez na vida termos sido serralheiro especializado ou jornalista simpatizante.

(Texto escrito e publicado no dia 16 de Fevereiro de 2012)

8 comentários:

  1. excelente texto.
    É! voltámos, oficialmente, aos tempos da misericórdia e da caridadezinha.
    Se me permite, vou enviá-lo para os meus contactos.

    obrigado

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    1. Caro Citizen,
      Obrigado pela visita e pelo comentário. E muito obrigado pelo seu obrigado. Volte sempre!
      h.

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  2. A pretexto da crise, que "vende muito" e é preciso alimentar, tudo se escreve, tudo se diz, muitas vezes sem saber o que se escreve ou o que se diz. São uns pobres de alma, se Nane. Tanto os que escrevem (não todos, mas muitos deles) como os que os mandam escrever.
    Grande abraço,
    P.

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  3. Olá Hernani
    Excelente retalho social.
    Voltei aos anos setenta, altura em que apenas uma fila de carteiras (escolares)nos separava, naquela sala de aulas entre a barbearia do Velho Pimenta e o enorme refeitório.
    Lembro-me, que também eu era da mesma condição de todos nós. Também recebíamos em casa o "Tone de Cunhas" à Segunda feira o "Tachim" à Terça e, à Quarta ou Quinta o pedinte mais pobre de todos, homem de quem eu nunca soube o nome. O meu pai, tratava-o sempre carinhosamente por velhote. Era esperto este velhote. Chegava sempre na hora do repasto e, como quase sempre, comia à mesma mesa que nós.
    Cem anos que eu viva e nunca esquecerei a sua resposta à pergunta do meu pai:
    Ó Velhote, você que anda de terra em terra, que conhece as pessoas de uma forma diferente da minha, diga-me uma coisa; neste mundo, devemos ser bons ou maus?
    A resposta demorou um pouco, porque as palavras não tinham a mesma importancia do arroz de feijão com bolinhos de bacalhau que passeavam entre o prato e o estomago, mas entre as deglutições e um gole de verdasco disse:
    Olhe meu caro senhor, nesta vida não podemos ser bons nem maus, porque se somos bons, todos nos fodem e, se formos maus passamos a ser uns filhos da puta. Portanto temos que ser "assim assim"...
    Nunca percebi bem se aquele pobre era político, ou se aquele político era pedinte. Por mim gostaria que eles (os políticos), fossem pobres, provávelmente seriam mais politicamente corretos (como o velhote).
    Um abraço
    Toni

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    1. Caro Toni,
      Muito obrigado pela visita, pelo naco de prosa e pela memória. Se quiser, contacte-me para hernani.doellinger@hotmail.com
      Abraço,
      h.

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    2. Hernâni. Este homem já mo havias mostrado. Fotografaste-o com o teu novo olhar e, muito bem !
      De repente, para não me alongar muito e a propósito do clero, lembrei-me do pão dos pobres, anos cinquenta. "pão se santo António" assim era designado pelo padre de Lordelo do Ouro, onde cresci. Era entregue um casqueiro (sêmea) por pessoa, no final da missa das onze, mas não sem que antes o dito padre se encarregasse de o estragar, aspergindo "água benta" sobre o pão, acondicionado nos cestos de vime. Abraço

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