sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

O pãozinho do Senhor

Vi num programa de televisão, daqueles que temperam o turismo com gastronomia, que na Turquia há um respeito muito grande pelo pão. Um respeito tão grande que bocado que cai ao chão não vai para o lixo. É apanhado, guardado e comido na refeição seguinte. Não sei se é bem assim, mas foi assim contado. E eu gostei do que ouvi, falou-me à memória.
Desconheço que influências culturais trocaram entre si Portugal e o Império Otomano, e se essas influências foram tão longe que chegaram a Passos, Cabeceiras de Basto, à casa da minha avó. Sei é que foi neste fim de mundo que eu também aprendi a reverência pelo pão.
Na Casa do Carreiro comia-se na cozinha, à volta da lareira. Os adultos sentavam-se em compridos preguiceiros, apetrechados com uma conveniente tábua-mesa de levantar e baixar, e os miúdos ajeitávamo-nos em pequenos bancos de três pernas, os mochos, obra de carpintaria simples e doméstica. Os cães também tomavam posição, anorécticos involuntários, à espera dos ossos que não havia. Levavam espinhas de bacalhau de quarto e era um pau.
O chão da cozinha era mesmo chão, uma terra negra do fumo e da fuligem, dos anos de uso e das águas entornadas, que lhe davam uma consistência de cimento. Sim, as águas dos potes ferventes ou da banca de lavar louça (atenção, uma banca de madeira), quando já desnecessárias, eram ali mesmo esparramadas, voltando a reunir-se, acho que me estou a lembrar bem, numa espécie de rego que as levava finalmente até lá fora, até ao carreiro que dava o nome à casa. O chão da cozinha descaía para o lado do carreiro. E tudo ajudava à limpeza. Depois era só esperar que secasse um pouco e varrer com uma vassoura de giestas.
Era neste chão que eu às vezes deixava cair o meu naco de pão, quase sempre um bom pedaço de côdea, que era do que eu mais gostava. A minha avó, mansamente, para que o meu avô não se zangasse comigo, dizia apenas:
- Apanha o pão. É pãozinho do Senhor. Dá-lhe um beijinho e já o podes comer...
E eu beijava o pão e comia-o, com todo o respeito, como se estivesse na igreja a comungar.

Em Fafe, a minha mãe insistia nestes ensinamentos. Dizia-nos, a mim e aos meus irmãos, que o chão não sujava, que o beijo purificava, que não se podia estragar pão, era pecado, porque havia muita gente com fome. E se o pão ficava intragável e tinha mesmo que ir para o lixo, só depois de um beijinho de adeus, porque, exactamente, era pãozinho do Senhor.
Em minha casa também não se estraga pão, não se estraga nada. E, se se estraga, quem fica estragado sou eu.

Não sei de onde veio esta ideia antiga, se estará mesmo ligada à fé, à religiosidade popular, ao pão que é o corpo de Cristo. Acredito mais que era sobretudo a pobreza a defender-se, consciente da importância do pão na mesa, o pão que, ontem como hoje, era a única fartura, a última fronteira para a fome. O respeito pelo pão era o respeito pela fome. E ninguém respeita tanto a fome como os pobres.

(Texto escrito e publicado no dia 15 de Setembro de 2011)

6 comentários:

  1. A minha reverência é do tamanho da inveja boa que me assaltou quando li isto. E quando leio a grande maioria dos outros istos, diga-se. (sim, que entro aqui por casa sem deixar rasto vai para quase todos os dias).

    Ass.
    Sr. Santos

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  2. O Sr. Santos é da casa, esteja à vontade. Muitíssimo obrigadíssimo pela visita e pelo comentaríssimo, caro amigo. Um destes dias temos que.

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  3. Caro Hernâni
    Todo eu me revejo neste seu escrito sobre o pão dos pobres, ou do senhor.
    Sabe amigo, o pãozinho dos ricos também cai, ou caía na mesa do pobre e, quantas vezes, com o devido respeito pela fome, bem evidenciado sob a marca rubra de uns lábios.
    Gaspar de Jesus

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  4. Obrigado, caro amigo, pela visita e pelo comentário.

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  5. Eis o que verdadeiramente são "palavras apetrechadas de asas" (aprendi o grego - só um pouco! - com o padre Eusébio Dias Palmeira e só muito mais tarde vim a saber da existência de Maria Helena da Rocha Pereira e a ler as traduções de Frederico Lourenço). Tal como em Passos, era assim nos meus dias de menino em Vila Boa de Bucos, terra onde comovidamente regresso subindo de Fafe para a Lagoa e olhando (com o sentido que tal palavra tinha para os gregos), no mês de Maio, os campos de abrótegas (asphodelus albus), de lanças ao alto, quais exércitos gregos ou persas em ordem de batalha...
    Um abraço. Luís Carvalho

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