sábado, 5 de outubro de 2013

Nós bem, graças a Deus

Foto do arquivo pessoal do ex-pára-quedista fafense ÁLVARO MAGALHÃES

Fernando Pessoa inventou e patenteou o aerograma. Exactamente esse Fernando Pessoa, o da "Mensagem" e dos heterónimos - se não sabiam, ficam a saber. O aerograma era uma carta sem envelope e andava de avião. Escrevo era e andava porque não sei se ainda há aerogramas. Se há, são fáceis de reconhecer: os aerogramas são cartas levezinhas e contorcionistas que se dobram e fecham sobre si mesmas. É procurar nos circos.
O aerograma foi um enorme sucesso durante a Guerra Colonial. Era o meio de comunicação preferido entre as famílias cá na então chamada metrópole e os militares enviados lá para o então chamado Ultramar, para o campo de batalha do regime. O aerograma matava saudades entre Portugal e África. Mas também inventava amores, alimentava namoros, alcovitava casamentos. Contava histórias.
Em Fafe, os aerogramas eram vendidos no palacete do Grémio da Lavoura. Entrava-se pela porta das traseiras, e está certo, porque a guerra era uma vergonha. Eu ia comprar aerogramas para a Mila Tripa, que se tornara madrinha de guerra do soldado Valentim que eu não conhecia. Nem ela. A Mila trabalhava na Fábrica Alvorada e era como se morasse connosco, era da família a bem dizer, uma espécie de tia e irmã mais velha, mulher extraordinária que o tempo me obrigou a admirar e respeitar cada vez mais.
Os aerogramas eram oficialmente grátis e já não me lembro quanto é que custavam. Que se segue? Aerograma para lá, aerograma para cá, fotografia para cá, fotografia para lá, e poupando nos pormenores, a Mila e o Valentim passaram naturalmente a namorados e noivaram por correspondência. O soldado Valentim deixou as pernas na guerra, mas voltou homem inteiro e bom. Ele e a Mila casaram. E foi um final feliz.

Noutros casos, não. Às vezes os aerogramas não vinham. Chegava um telegrama e a seguir um caixão. Vi disso em Fafe naqueles anos cinzentos. Apesar da meninice, vivi-o e senti-o profundamente. Vezes de mais. Trinta e sete militares fafenses morreram na Guerra do Ultramar. O funeral do Zeca Lopes - que era dos nossos, da nossa rua - marcou-me para toda a vida. Creio que há coisa de 25 anos escrevi para a rádio uma crónica a pretexto deste episódio que me persegue, mas não sei dela e tenho pena. Porque, por mais que doa, é preciso não esquecer.

Leio que, após obras de recuperação, o palacete do Grémio da Lavoura (o dos aerogramas para a guerra) vai ser hoje pomposamente inaugurado como novo edifício do Arquivo Municipal, coisa em grande. E isso é bom. De certeza que aquela parte da nossa memória e da História também lá tem reservado o seu cantinho. Ou não?

6 comentários:

  1. É, Nane, hoje tocas em coisas tristes mas que não devemos esquecer nunca. Tudo o que dizes é sagrado porque eu estou dentro das tuas palavras e do teu pensamento. A Mila, uma moça sã que tão bem se dava com a tua mãe, com as minhas irmãs! O funeral do Zeca que também não esqueço enquanto viva! Eu sei dizer-te em que fila eu estava na Igreja Matriz, á espera do caixão e ao lado da Sãozinha pequenina, a irmã.
    Eu acho que eram grátis os aerogramas porque eu tive montes de afilhados de guerra e não tinha dinheiro para gastar! :)
    Lembro-me muito bem do Grémio mas de ir lá buscar um documento qualquer, sempre que o meu pai comprava uma pipa de vinho!:)
    E gosto do Palacete porque era pegadinho ao Colégio e tinha um magnoeiro cheínho de magnorios que nós desvastávamos descaradamente.
    Bom fim de semana, Hernâni! Obrigada, um abraço dos grandes!

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  2. Ui Ui Hernâni... "o que foste desenterrar". Mais logo, quando tiver tempo, vou debruçar-me, salvo seja, sobre este assunto que me diz muito. Até logo.
    Gaspar de Jesus

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  3. Quando estalou a luta armada dos movimentos nacionalistas em Angola e Moçambique, Portugal de Salazar não estava minimamente preparado para apoiar os seus militares em situação de guerra. O que havia era um enorme vazio no que respeitava a situações de morte, à transladação dos corpos, às pensões de sangue, ao tratamento e encaminhamento dos feridos. Também no que dizia respeito ao apoio a prestar às famílias do militares mobilizados e no apoio moral aos próprios militares. Foi então que surgiu o MNF (Movimento Nacional Feminino), presidido por Cecília Supico Pinto, de que faziam parte outras mulheres, todas elas de algum modo ligadas ao Estado Novo e à alta finança portuguesa com fortes interesses económicos nas Colónias portuguesas. Supico Pinto sabia que a 1.ª República Portuguesa tinha criado um rudimentar Serviço Postal aquando do envio do Corpo Expedicionário Português para a Flandres (1.ª Guerra Mundial). Decidiu, por isso, criar e propor a Salazar a aprovação do aerograma, a que viríamos a alcunhar de "bate-estradas". Era uma folha de papel com o peso máximo de três gramas que se dobrava em quatro, por forma a que não ultrapassasse os quinze centímetros no seu lado maior. Custavam vinte cêntimos cá na Metrópole e eram vendidos em vários postos acreditados para tal, inclusive nas Juntas de Freguesia. Já para nós, militares nas Colónias, a sua aquisição era gratuita. O primeiro contacto que tive com os "benditos" aerogramas e com as senhoras do MNF foi ao pisar o convés do Vera Cruz. Entregaram-me em mão um saquinho de pano-cru com um bloco de carta, uma esferográfica, um maço de tabaco (!?) e meia dúzia de aerogramas. Estes simpáticos sobrescritos estavam isentos de selo, mas, em contrapartida, não asseguravam qualquer tipo de confidencialidade; dado que eram abertos nas laterais, era muito fácil ler tudo o que lá se escrevia. Tal facto dava imenso jeito aos curiosos de saber da vida alheia, ou até aos serventuários da PIDE-DGS, embora me custe a crer que esses "advogados do diabo" tivessem qualquer hipótese de controlar, minimamente que fosse, as cerca de dez toneladas de bate-estradas que diariamente (!) eram transportadas pelos aviões da TAP que faziam as ligações entre Lisboa e as capitais das mais tarde chamadas Províncias Ultramarinas. Se em Luanda a chegada dessa missiva, ou a falta dela, influía e muito no nosso ânimo, já no mato (selva angolana) esse efeito se fazia sentir de forma exponencial. Isolados do mundo civilizado e com a vida permanentemente em risco, os nossos soldados viam na chegada das colunas e na distribuição do correio um elo, quantas vezes o único, que os ligava à vida. A alegria de ouvir pronunciar o nosso nome do alto da viatura mensageira só tinha paralelo na dor que sentíamos no peito quando tal não acontecia. Ao rosto dos militares assumia rapidamente a felicidade por saber que estavam bem os que lhes eram queridos, em contraponto com as lágrimas que tantas vezes vi correr pelas faces dos que recebiam notícias que temiam, ou com que não contavam, e que, àquela distância, faziam deles ainda mais infelizes e desprotegidos. Valia-lhes, nesses casos, a solidariedade dos companheiros que procuravam saber do que se havia passado e sempre constituíam "um ombro" ao qual podiam recorrer nos momentos mais difíceis. No que respeita aos nossos mortos, Salazar apenas transladava para a Metrópole os militares com patente a partir da classe de sargentos. As praças eram sepultadas muitas vezes no próprio local onde morriam. Ou então, sempre que possível, no talhão militar do cemitério mais próximo do acampamento militar a que pertenciam. Para que as famílias lhes pudessem fazer o funeral na terra natal teriam de pagar uma importância que estava muito para além das parcas posses da esmagadora maioria dos portugueses. Por fim, importa salientar a forma eficaz como o SPM (Serviço Postal Militar) se organizou e cumpriu a difícil missão, à qual chamou " A VIDA POR UMA MENSAGEM".
    Gaspar de Jesus

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    1. Muito obrigado, Gaspar de Jesus, pelo teu testemunho e contributo. Texto interessante e importante. Abraço.

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  4. O Núcleo de Artes e Letras de Fafe vai realizar um curso livre de história local sobre o impacto da Guerra Colonial no nosso concelho. Começa em 24 de Outubro e decorrerá semanalmente, às quintas-feiras, até 21 de Novembro, das 18h30 às 20 horas, no auditório da Biblioteca Municipal.
    No texto de apresentação do curso afirma-se que, "de acordo com dados oficiais", ascende a 40 o número de militares fafenses que morreram na Guerra do Ultramar.
    Mais informação em
    http://nalf-olhares.blogspot.pt/2013/10/nucleo-de-artes-e-letras-promove-curso.html

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