segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Ele há lendas e lêndeas

                                                                                      Foto Hernâni Von Doellinger

Faço ideia: levar à cena a "recriação histórica" de uma lenda deve ser obra desenganada. Porque a lenda, até prova em contrário, conta um acontecimento que nunca aconteceu. Não existiu. E, no entanto, por ser "histórica", a "recriação" implica que ela seja contada rigorosamente tal qual não foi. Estão a ver a real impossibilidade da empreitada?
Pois bem. Durante três dias, a lenda de Caio Carpo foi pormenorizadamente representada no areal da Praia de Matosinhos. A lenda de Caio Carpo é do tempo dos romanos. E eu fiquei a saber que os romanos que por cá andaram eram muito gaiteiros e tamborileiros, tinham WC, electricidade e altifalantes. Foram eles também que inventaram as feiras medievais e ainda nem se suspeitava que ia haver Idade Média.
Aqui que ninguém nos ouve, a lenda de Caio Carpo é um bocado barulhenta, isso é. Mas justifica-se a fanfarrice: prevista e anulada pela Câmara em 2009, por causa da "crise económica", a "recriação histórica" agora erguida é o sinal luminoso de que, pelo menos em Matosinhos, as vacas gordas estão de volta a Portugal.
A esta hora, lá em baixo desfazem-se as tendas. Tenho pena. Na época do Império, Roma marcava no seu calendário 175 dias de jogos e festividades por ano. Pão e circo para o povo. Matosinhos também merecia mais.

Lendas, contava-as bem a minha avó de Basto. Eram lendas mansas, de embalar, metiam mouras encantadas, príncipes, penedos. Penedos de morar, lembro-me bem e eu queria um. Eram contadas à lareira, depois da ceia, com o vermelho do fogo a bailar-nos nas caras espectrais, eu de olhos arregalados e boca aberta, uma e outra vez, como se fosse sempre a primeira. Os efeitos especiais das lendas da minha avó Emília foram muitos anos mais tarde copiados pelo cinema americano. Até aquele  famoso jogo de sombras manipulado pela irrequieta chama da candeia, coisa extraordinária e assustadora - era das lendas da minha avó. E o vinhinho aquecido com uma maçã assada lá dentro também, mas isso parece que os filmes não aproveitaram.
Na manhã seguinte, pela fresca, íamos à lenha ao monte. Eu e e minha avó. E a bó mostrava-me o penedo, o exacto penedo da moura encantada, não havia dúvidas. Ainda por cima, as lendas da minha avó eram verdadeiras.

6 comentários:

  1. Caio Carpo e a Trindade :-)

    ResponderEliminar
  2. Já nem sei o que escreveste em cima sobre a lenda de caio carpo ou lá o que é mas da tua avó que conheci e das coisas lindas que dizes sobre ela, não esqueço, não :)



    ResponderEliminar
  3. Hernâni esta é mais uma "pérola" que aqui nos deixas. Ler estes teus textos poéticos é alhear-mo-nos de tudo o que de mau nos rodeia. As histórias que envolvem a tua avó Emília, teu pai, tua mãe e outros membros da tua família são uma manancial de Cultura que se fossem aproveitadas...!!! Ahhh mas isso teria que ser em outro país que não o nosso.
    Parabéns meu amigo e o meu sincero obrigado.

    ResponderEliminar
  4. Faço minhas as palavras do Gaspar. Não conheci a tua avó, mas até parece que a estou a ver. Quem escreve assim não é gago! Mais uma bela prosa, se Nane.
    Grande abraço,
    P.

    ResponderEliminar