domingo, 3 de março de 2013

Bulhão Pato

José Augusto Galache, sem jactâncias nem farroncas, era um rapaz que não tinha medo do diabo à meia-noite. Agora lá está na sua propriedade do Freixo, ao pé de Vale de Lobos, tratando da sua lavoira, beijando a terra para manter as forças, sempre jovial e gentil-homem. A bravura e galhardia do cabo de forcados nas toiradas de amadores no Campo de Santana foi tal que ainda hoje corre na lenda entre os novos.
Um dia, em Dezembro, véspera de Nossa Senhora da Conceição, embarcámos, noite cerrada ainda, com Lourenço e seus dois filhos mais velhos. Tempo seco, sem vento, e intensamente frio; a geada caía em carambinas. Proa ao Torrão. Lourenço da Pinha, expansivo, animava os filhos:
– Vamos, rapazes, de voga arrancada, que é para aquecer.
Havia águas de monte e o barco, mal clareando, abicou defronte da Quinta do Miranda.
Os dois rapazes acompanharam-nos, e o pai ficou guardando o barco à nossa espera. Os terrenos planos e à beira-mar do Juncal eram lenteiros, enchabocados, como dizem os homens do campo e os caçadores. Nós tínhamos dois cães soberbos: o Black de José Augusto e o meu Faliero. Ambos muito bem parados, cobrando de ferido, e trazendo à mão toda a espécie de caça. Depois do ímpeto da primeira batida sentámo-nos num medão de areia, acudimos ao almoço, que vinha nas redes, e matámos a fome. Engolfámo-nos Juncal dentro. Quando demos por nós estávamos muito adiante das barracas da Costa.
O estômago não tinha a mais leve memória do almoço; a ambição de caçar no dia seguinte não nos mordia menos de que o apetite voraz. Resolvemos ficar; mas ficar aonde e comer o quê? À sorte.

"Memórias", Bulhão Pato

(Raimundo António de Bulhão Pato nasceu no dia 3 de Março de 1828. Morreu em 1912.)

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