quinta-feira, 7 de junho de 2012

Eu era mais côdea de broa com açúcar amarelo

Conhecia-os de vista. De passar pelas montras ou das mesas do Peludo, mas nunca me tinham sido apresentados. Até que uma vez o meu pai trouxe meia dúzia para casa. Vinham naquela caixinha de papel, obra de engenharia feita na hora, ali mesmo aos olhos do freguês, com a habilidade e o requinte de quem constrói um avião. Se me estou a lembrar bem, havia, naquele tempo, os bolos de arroz, as bolas de berlim, os queques, os jesuítas, os caramujos, os mil-folhas, as natas e os cocos. As tíbias apareceram depois, já na era das minissaias.
O meu pai chegou muito tarde "da música" e se calhar os pastéis vinham por isso, para adoçar a boca à minha mãe. Não tenho a certeza. Era pequeno demais para então perceber o que agora sei tão bem. Mas gostei da festa que foi: acordámos - a Nanda, o Nelo e eu -, sentámo-nos todos na beira da cama da frente, ao lado da nossa mãe, provámos a novidade, o nosso pai fez-nos rir e fomos felizes. Então pastéis era aquilo? Era bom. Para mim, quase tão bom como uma côdea de broa coberta com açúcar amarelo.

Fafe era um terra de antonomásias. No nosso imenso pequeno mundo, tínhamos o Largo, a Avenida, o Monumento, a Recta, o Campo, o Depósito, o Banco, os Serviços, a Bomba, o Jardim, a Quelha, o Santo e o Café, que era o Peludo, na verdade Cine-Bar. Mas cafés e tascos havia muitos. Uma mão-cheia de cafés, e tascos até dar com um pau, para ser mais preciso. Pastelarias, salões de chá ou snack-bares é que nada, até aparecer o Dom Fafe, mesmo no centro da vila, coisa fina e para clientela sem gases. O Dom Fafe passou a ser o Snack-Bar.

Eu era calisto. Calisto televisivo. A preto e branco e com muitos pedimos desculpa por esta interrupção. Para me fazer pagar a moina, o Sr. Avelino do Café, que era o Hoss do "Bonanza" em pessoa menos o chapéu, entregava-me umas moedas e mandava-me à cozinha do Hospital buscar uns enormes tijolos de gelo que ele depois partia e metia no barril de tirar finos (imperiais, se lido em Lisboa). No fim do recado dava-me o troco? É o davas. Oferecia-me um pastel? Fodias-te. Eu tinha para aí sete anos, o meu pai ainda não tinha trazido pastéis para casa e o Sr. Avelino (o tempo fez-nos amigos) punha-me à frente a merda de um cimbalino. Sete anos, e ele dava-me um café. Se ao menos fosse um cigarro...

Não sou de doces. E, dos pastéis que o meu pai trazia para casa, o que eu gostava mais era da festa, do riso. Daquela meia hora extra fora da cama. Da sensação de família e fartura, da felicidade antes do sono. Porque o meu doce preferido era outro: era a côdea de broa, "grande daqui até ao céu", enfiada às escondidas na lata do açúcar amarelo (tinha de subir à mesa da cozinha para chegar ao armário) e comida na clandestinidade do fundo do quintal. Isso, sim, era o meu bolo. Havia lá coisa melhor no mundo!? Por acaso até havia: era a gemada. Mas essa só podia ser duas vezes por ano, acho eu, pela passagem de classe e no meu aniversário. Com os ovos, lá em casa, todo o cuidado era pouco. Estavam contados, eram para deitar. E ao açúcar a minha mãe fechava os olhos.

8 comentários:

  1. Mais um escrito de se lhe tirar o chapéu! Com ou sem açucar, é uma doçura ler coisas destas. Ainda por cima, fez-me reler outras prosas deliciosas.
    Grande abraço,
    P.

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    1. Obrigado, caro Amigo, pela visita e pelo comentário. Temos que lá ir, ainda por baixo! Abraço,
      h.

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  2. Também ganhei o direito a algumas gemadas. Na verdade, percebi anos depois, nem era assim grande fã delas!... eram um prémio e por isso sim, eram boas! Agora, gostar... gostar... era do biju com a banana dentro. Isso sim, era bom! Às vezes também tinha direito, vá lá saber-se porquê!, a outros miminhos especiais. Em segredo! Sozinho no quarto do meio, para mais ninguém ver. Às vezes era um pastel (uma tíbia, que eu adorava)!...

    j.

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    1. Lá está, a tíbia nunca me deu. Tinha creme, pá! Absolutamente dispensável. Como na bola de berlim, quem ma dera, naquela altura, sem a merda do recheio. Sabes que as bolas de berlim, para serem como manda a sapatilha, eram fritas, não eram de ir ao forno como este sucedâneo padario de agora.
      Quanto aos segredos: o biju com banana, as tíbias no quartinho do meio e... a mãozinha de anho. Pensavas que eu não sabia? Eu sei tudo. Abraço.

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  3. E as cavacas?? Essas sim sempre doces de Festa.

    Abraço Miguel

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  4. As cavacas que mais gostava era as da puia. Tinham a fama de ser lambidas. Já agora, Hernâni, parece que o Dom Fafe vai passar a pastelaria. Por isso, o seu texto foi parar aos facebooks para os nossos conterrâneos o lerem. Espero que não se importe. Abraço



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