quinta-feira, 17 de maio de 2012

Em memória da burra do Reigrilo

Vou directo ao assunto: a corrida de jericos faz falta. Olho para o programa das Feiras Francas de Fafe, que começaram ontem, e o que vejo, marcada para a tarde de hoje, é a "corrida de cavalos a passo travado". Apenasmente e, ainda por cima, estigmatizada por essa denominação assaz amaricada, "passo travado", só faltava mesmo dizer-se que as cavalgaduras também vão de salto alto. Mas burros é que nada, e logo nos tempos que correm. Parece impossível.
Lembro-me muito bem como era. Havia a corrida de cavalos, sim senhor, coisa amadora, com montadores e montadas da terra e arredores, que mediam forças por entre um mar de gente cheia de entusiasmo, chapéus e vinho, na mais nobre rua da vila. No empedrado onde costuma terminar a etapa da Volta a Portugal em Bicicleta. Partiam em frente ao Café Império e iam dar a volta na Cafelândia, ainda não havia rotunda, com as ferraduras novas a chisparem por todos os lados e alguns animais, de travões bloqueados, a espargatarem contra vontade para um 10 de nota artística nos Jogos Olímpicos e os donos de focinho no chão. Ao Império regressavam apenas três ou quatro conjuntos completos e o pódio era discutido já depois de cortada a meta, à força de varapau, ameaças de tiros e polícia, com a multidão a tomar diferentes partidos, de cabeça e chapéus perdidos, mortinha por também molhar a sopa. Isto eram as pessoas, os cavalos não se metiam. Mesmo os cavalos que tinham terminado a prova sozinhos, apesar de um tudo-nada desorientados, mantinham o fair play, viravam as costas à confusão e iam procurar os donos mercurocromados para pedirem desculpa pelo mau jeito. Quanto ao júri, ponderava criteriosa e responsavelmente todos os argumentos em discussão, sobretudo os argumentos que metiam pistola, e depois entregava a taça às primeiras mãos que a agarrassem.
O melhor vinha a seguir. Era a corrida de burros, que não era bem uma corrida, porque os burros recusavam-se terminantemente a correr. Davam uns passos, nem sempre no sentido correcto, e se calhar às vezes não havia vencedor. Mas o povo ria-se. É preciso que se note, porém, que os burros portavam-se assim não por serem burros mas por serem ignorantes. Na verdade, naquele tempo eles ainda não sabiam do estudo da Universidade de Londres que acaba de descobrir que os burros não são animais estúpidos nem teimosos. Serão surdos ou não compreendem inglês, quando muito, mas agora já sou eu a extrapolar.
O Reigrilo tinha uma burra que se chamava a burra do Reigrilo. O Reigrilo era tão teimoso como a burra, portuguesa e analfabeta, mas bebia muito mais. Eu nunca na vida vi o Reigrilo sóbrio. A sorte dele, quando saía do tasco do Paredes em adiantado estado de fermentação, era exactamente a burra, que o levava a casa, submissa e em piloto automático, debaixo de um chorrilho de insultos e chibatadas absolutamente imerecidas. Eu tinha medo do vinho do Reigrilo e a burra parecia que também.
Creio não cometer nenhum erro histórico se afirmar que a burra do Reigrilo só fazia frente ao dono pelos "16 de Maio", na corrida que nunca era. O Reigrilo, altamente decilitrado, aparecia sempre, para incómodo da organização e gáudio da populaça. Podiam dar a partida quantas vezes quisessem: a burra do Reigrilo não saía do sítio, apesar das bordoadas impiedosas que apanhava, e se se mexia era apenas para deitar o dono de cangalhas, uma e outra vez, numa vingança anual e certamente bem amadurecida, ali mesmo onde a humilhação do homem podia ser maior.
Por falar em humilhação. Soube-se ontem que a sorte grande do desemprego já sorri a mais de um milhão de portugueses, números oficiais. Não sendo tão bom como uma corrida de jericos, é, no entanto, uma alegre notícia para todos os felizes contemplados, provavelmente a melhor do ano - no disléxico léxico de Pedro Passos Coelho. Quem sabe até se não estará aqui a oportunidade de que o povo carece para resolver enfim atirar com a albarda ao ar.

17 comentários:

  1. Só tive o previlegio de assistir a esta prova há uns anos largos atras ( embora nao seja tao velho como tu! ). Era de facto alucinante ver as pessoas com a preocupação de marcar lugar para poder assistir ás provas quase olimpicas. No meu tempo acho que davam a volta enfrente ao café Valdestevão, ou estarei enganado???? De salientar que a nossa BOMBA fazia muito serviço de transporte ao Hospital nessa altura das ditas provas, nao para levar os sinstrados mas sim os decilitrados.
    Abraço Miguel

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. A Cafelândia era a referência, um pouco adiante do sítio do café Bald'Estevo, na esquina com a Rua de Montenegro. Curiosamente, no velho casarão que deu lugar ao café Bald'Estevo ainda vi trabalhar um ferrador, exactamente no dia da corrida.
      Obrigado pela visita e pelo comentário. Abraço.

      Eliminar
  2. Obrigado pela tua emenda ao nome do cafe Bald´Estevo.
    Abraço Miguel

    ResponderEliminar
  3. Caro Miguel
    Chamar velho ao Hernâni, é o mesmo que chamar preto ao Zé-Zé Camarinha. Enquanto o "super-macho latino" está tostado pelo sol, o Hernâni está "velho" mas é de sapiência.
    Gaspar de Jesus

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Caro Gaspar de Jesus,
      Quando tens razão, tens razão. E não serei eu a contrariar-te.
      Vi que correu bem a 6.ª sessão das tuas Tertúlias Fotográficas (http://gaspardejesus.blogspot.pt/.). Obrigado pela visita e pelo comentário.

      Eliminar
  4. Fafe, terra fértil no que a jericos diz respeito!... Pois a Burra do Reigrilo, mas também a Burra do Padre Zé, a Burra do Bidalegre, entre outras excelentíssimas Burras menos mediáticas mas, também excelentes no que ao GPS dizia respeito!

    j.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Problemática interessante e a dissecar numa próxima oportunidade. Eram burras, e burras velhas, mas muito à frente do tempo delas. Obrigado pela visita e pelo comentário, caro j. Abraço.

      Eliminar
  5. Estou encantada com as tuas memórias que afinal, são também as minhas. Eu tenho tanta coisa escrita e parecida com isto!! «A gente» é que pensa que tudo o que fazemos não tem interesse para ninguém. Agora sou reformada e vou pensar em avivar mais a minha memória :) Bem hajas!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado, Fernanda. Sabes que estou constantemente a ver a tua mãe a fritar sardinhas?...

      Eliminar
    2. e eu a vê-la a correr com os «borratchos» de outras tascas enquanto o meu pai sereno: deixa lá mulher,sempre se faz mais uns testóes...
      Ainda não almocei, Nane. Encontrei-te e alimentaste-me por umas horas. Obrigada, felicidades!

      Eliminar
  6. Hernâni, quero pedir-lhe um favor. Não quer dar autorização para publicar este texto devidamente identificado no blogue Montelongo? Seja qual for a sua resposta, obrigado!

    ResponderEliminar
  7. Hernâni, num comentário ao seu texto, perguntava um leitor do Blogmontelongo se sabe do nome do Reigrilo. É capaz de lhe responder? obrigado!

    ResponderEliminar