sábado, 14 de abril de 2012

Quando a "puta" tocava

Foto VICTOR FOTÓGRAFO

A "puta" tocava e Fafe desatava a correr em direcção aos Bombeiros. Os homens largavam tudo: trabalho, mesa, cama, mulher e até os socos pelo caminho. Havia os que iam de bicicleta e os que apanhavam boleia de motorizada. Carros paravam para levar desgraçados vindos das lonjuras da Cumieira ou dos campos do Sabugal e já com os bofes de fora. Depois, havia o Casimiro das Caixas, que começava o dia a fazer as palavras cruzadas no jornal do Café Chinês e chegava na sua velha furgoneta.
Mas quando ela tocava era para todos. Tocava também para os curiosos, para os que iam apenas ver, saber onde era o fogo. E faziam-se úteis. Apanhavam e arrumavam as bicicletas e as motorizadas que os bombeiros largavam em pleno andamento ao chegarem ao quartel e um deles ainda tinha que ir estacionar em condições a carrinha do Casimirinho, deixada sempre à frente dos portões a estorvar a saída dos carros de incêndio.
Ela tocava e eu, miúdo, lá estava. Olhava para aqueles homens, esbaforidos, trementes, brancos como a cal, a entrarem na "primeira viatura" apenas meio vestidos, a enrodilharem-se nas calças que não enfiavam ou nas galochas que levavam ainda nas mãos, cheios de urgência para enfrentarem as chamas, e via heróis. Exactamente: heróis! Os meios eram escassos, a formação era elementar, Fafe era uma terra pequena, mas aqueles homens tinham um coração bombeiro do tamanho do mundo.
Tão grande era o coração, grande de mais para um homem só, que depois tinha que ser repartido. Ser bombeiro era coisa sanguínea, "doença" de família. Irmãos, pais e filhos, netos, tios e sobrinhos, primos, todos sofriam do mesmo bem. Creio que hoje ainda é um bocado assim.
Naquele tempo, eram os do Santo, os do António Quim (sim, o do cinema...), os Moleiros, os Costas do Assento, os Feira Velha, os Funileiros, os Quintos. Eram também o Agostinho Cachada, o Augusto Susana, o Frescaragem, que tinha lábia de leiloeiro, o Nogueira da Ponte do Ranha, que "fardava muito bem", o Zé dos Alhos, o Zé Sacristão (avô do actual comandante, cá está!), o Nelo Chapeleiro, o Chaparrinho, o Ferreira "Puta Velha", o Armando "Salazar", que era o Viagra em pessoa, o enorme Sr. Humbertino, que trabalhava para os Summavielles e já só se apresentava no dia da Festa dos Bombeiros, tal como o Joãozinho motorista, que conhecia como ninguém as manhas do Opel descapotável e apanhava todos os anos uma carraspana de tal ordem que era preciso levá-lo a casa.

Naquele tempo, ser bombeiro dava muita sede e a água era toda para apagar incêndios. De modo que, conscienciosos, os voluntários fafenses, regra geral, decilitravam no verde tinto com apreciável pertinácia. O meu avô da Bomba, que era quarteleiro e videirinho, até montou um pequeno tasco que foi um sucesso. O meu vizinho Agostinho Cachada era um dos principais clientes, mas tinha um porém: pelava-se por bagaço e quando ia para casa nunca mais lá chegava, porque, mesmo depois de o meu avô fechar o tasco, o bom do Sr. Agostinho voltava sempre para trás para beber mais um. Era certinho. Uma noite, para lhe evitar a canseira e apressar o sono, o meu avô foi atrás dele até ao Paredes, já a meio caminho, com a garrafa da aguardente escondida debaixo do capote...

Quando a sirene tocava, também as mulheres de Fafe se sobressaltavam. Era a "puta" que lhes tirava os maridos de casa, da cama. E eles iam para os braços da "outra". Os Bombeiros eram uma tremenda paixão, a "amante" perigosa que levava tudo o que queria. E elas tinham medo que, um dia, os seus homens não voltassem. Tolices de mulheres. Os heróis não voltam sempre?

(Texto publicado no dia 11 de Setembro de 2011)

4 comentários:

  1. Que bonito! A nossa " bomba " esta quase a fazer anos e conforme escreves, e bem, as memorias da bomba de Fafe são fantastica e nao se devem esquecer, por isso estou a tentar dar-lhe uma prenda ou melhor uma lembrança dos tempos antigos. Embora pequeno ainda bem me lembro dos nomes que mencionas e eram sempre uns herois. Quantas vezes deixei o prato para ir com o Padrinho américo para a bomba, porque precisav ade ver, de sentir aquela adrenalina. Esta no sangue, meu caro primo, nós fazemos parte dos da Bomba e independentemente dos tempos serem outros, continuaremos assim, OS DA BOMBA! Cada vez mais sinto orgulho pelos meu terem feito parte dos herois e cada vez mais conto as historias dos nossos herois a essa nova geração da Bomba, fico contenete pois todos eles respeitam e acreditam que de facto é um orgulho ser um heroi da nossa Bomba.
    Abraço Miguel

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    1. Obrigado, Miguel, pela visita. Sei que o teu comentário é sentido. Abraço,
      h.

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  2. Hernâni. Delicio-me com os seus textos. Mas só me dá vontade de os mostrar aos gajos e gajas de Fafe através do único meio que tenho disponível: o blogmontelongo. Posso roubar também este. Gostaria de o colocar nos próximos dias porque os bombeiros, pelos vistos, vão ter o quartel renovado. É possível este meu desaforo? Abraço e obrigado independentemente da sua resposta.
    http://www.bvfafe.pt/index.php?option=com_content&task=view&id=963&Itemid=70

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    1. Sirva-se à vontade, caro António Daniel. Sempre que queira. Não precisa de "autorização". Obrigado eu. Abraço.
      h.

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