terça-feira, 11 de outubro de 2011

O último comunicador

A minha missinha das oito é ouvir o Prof. José Hermano Saraiva a contar histórias na RTP Memória. Já o sei de cor como ao padre-nosso, mas gosto de o ter ali, exactamente ali, a servir de música de fundo ao meu jantar. Aqui que ninguém nos ouve, o homem tem tanto de historiador como eu de monge tibetano, o que lhe dá ainda mais valor: porque não há quem invente História tão bem como ele, não há quem estraçalhe com tanto panache tudo o que os verdadeiros especialistas escreveram com rigor, substituindo-o num estalar de dedos pelos seus próprios supores, e não há quem depois diga tudo o que acha com tanta graça, com tanta clareza, com um português tão perfeito e tão acessível e com tanta convicção. José Hermano Saraiva é único. Ele é o comunicador.
O professor sabe compor os "factos" como ninguém, sabe pintar a "realidade", consegue fazer com que a sua História seja sempre melhor e mais bonita do que aquilo que de facto se passou. E é cativante a contar. Vende bem. Muitas vezes não é verdade o que ele diz, mas podia ter sido, e a sua versão é sempre muito mais interessante do que a verdade ela mesma. Quase que se poderia dizer que, inadvertidamente, José Hermano Saraiva foi o inventor do moderno jornalismo português.

Ministro da Educação de Salazar, José Hermano Saraiva esteve no centro do vulcão que foi a crise académica de 1969. Figura polémica, criticado nos meios intelectuais e políticos, o professor ganhou o coração de sucessivas gerações de portugueses através dos programas que faz para a RTP. Penso, porém, que o fantasma do seu passado fascista às vezes ainda o incomoda. Num episódio onde revisitava os retratos dos vários presidentes da República, no Palácio de Belém, o professor deixou cair um curioso comentário sobre Canto e Castro, creio, que era monárquico convicto e assumido, que foi mesmo deputado no tempo da monarquia (eu percebi "ministro"), mas que ocupou depois, ainda que por pouco tempo, o cargo de chefe de Estado no novo Portugal republicano. "Fez a transição com elegância...", concluiu José Hermano Saraiva, e foi óbvio para mim que ele estava era a falar de si próprio, aproveitando para meter a ficha, como quem não quer a coisa, em mais um pouco de Omo.

Comecei por dizer que gosto de ouvir o professor na RTP Memória. Ali, onde ele é ainda um jovem de 80 anos cheio de genica. Incomoda-me ver os seus novos episódios na RTP 2. Não consigo. Não lhe deviam fazer isto. Não o deviam deixar fazer isto.
José Hermano Saraiva tem 92 anos e continua na TV. É uma boa notícia em absoluto, apesar dos meus incómodos, que para o caso são irrelevantes. Hoje como ontem, novas gerações poderiam continuar a aprender com ele, se não História a sério, pelo menos a falar bom português e a respeitar e a amar o nosso património. Mas era preciso que se percebesse o que o homem diz naqueles monólogos inenarráveis.
Já não há Vitorino Nemésio, lembram-se? E acreditem no que eu digo: isto, sim, são comunicadores. O resto são habilidosos, meros entertainers. No dia em que José Hermano Saraiva, não o de agora, sair de vez dos ecrãs, acabou o que era bom. Destes já não há mais!

7 comentários:

  1. Gostei da etiqueta Omo, rrsss Se bem me lembro... com 80 anos, O JH Saraiva era mesmo um jovem excelente comunicador, tomara muitos ministros serem tão claros como ele (o de agora com 92, claro)...

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  2. Não fui cínico nesse ponto. Ainda hoje o vi, aos 80 anos (feitos há pouco), na Guarda, e estava em grande forma. Dava gosto ouvi-lo, ainda que não ligássemos ao que ele dizia, disparates ou não. Era a musicalidade da comunicação que me interessava...
    Mais uma vez, muito obrigado pela visita e pelo comentário.

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  3. O se Nane lembra-se de cada coisa! Até do Nemésio (se bem me lembro...) e do Saraiva, irmão do Saraiva. E continua a prender os olhos de quem o lê do início ao fim das linhas. Que pena estas prosas não serem publicadas noutro lado, onde mais gente pudesse se pudesse deliciar e aprender a escrever português.
    Abraço,
    P.

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  4. Num comentário em que elogio o português, peço mil perdões pelo "pudesse se pudesse". O primeiro "pudesse" podia, e devia, ter sido apagado.
    (A culpa é de quem acabou com a secção da Revisão. Se ela continuasse a existir, muita gente continuava a ganhar prémios literários... e eu não dava uma calinada destas)
    Abraço,
    P.

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  5. Ó caro P., estou a ver que um destes dias tenho que lhe pagar um copo...
    Obrigado pela visita e pelo obviamente desmesurado comentário. Beijinho e mãozada lá para casa, respectivamente. Abraço para vosmecê.

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  6. Obrigado pela mãozada e pelo beijinho. Mas Vossa Excia sabe que um copo é apenas aperitivo. No entanto, copo a copo...
    Abraço,
    P.

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